Com o início do governo de Luiz Inácio Lula da Silva, Brasil e Bolívia podem cooperar para avançar nas investigações sobre o golpe de Estado, promovido pelas elites bolivianas e comandos militares, em novembro de 2019. O primeiro encontro do presidente Luis Arce com Lula, na última segunda-feira (2), marcou o tom dessa aliança.
"Ao companheiro Lula, queremos mostrar todas as hipóteses que levantamos e que fomos documentando durante todo esse tempo. Esperamos que o Brasil, com Lula, possa colaborar mais do que o governo anterior. Falta informação do lado de cá [do Brasil] para confirmar nossas suspeitas. Principalmente a de que o golpe de Estado envolveu muito mais atores e foi um plano arquitetado de modo ilegal", explicou Arce, em entrevista ao jornal Folha de São Paulo.
Em novembro de 2019, o presidente Evo Morales e seu vice, Álvaro García Linera, foram forçados a renunciar pelo comando da Polícia Nacional e das Forças Armadas, após vencer as eleições para um quarto mandato.
As elites econômicas da região oriental da Bolívia -- que concentra o agronegócio, mineração e a maioria da população branca do país -- apoiaram grupos paramilitares para gerar o caos, atacando a casa de ministros e seus familiares.
Sob ameaças de morte, Morales e García Linera receberam asilo político no México, enquanto em La Paz, no dia 12 de novembro de 2019, a então senadora pelo estado Beni, Jeanine Áñez, se autoproclamou presidenta da Bolívia
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Sindicatos, movimentos populares e indígenas mantiveram protestos durante quase um ano da gestão interina de Áñez, condenando o golpe de Estado e exigindo a convocatória de eleições gerais. Foi através das urnas que o Movimento ao Socialismo (MAS-IPSP) voltou ao poder com a eleição de Luis Arce, ex-ministro de Economia de Evo, em novembro de 2020.
Com a vitória de Arce, vários ministros da gestão golpista saíram da Bolívia por medo de punição. Já na época as autoridades bolivianas denunciaram que dois deles teriam fugido pelo Brasil: o ex-ministro de Defesa, Luis Fernando López -- que permanece foragido -- e o ex-ministro de governo Arturo Murillo, que terminou sendo preso nos Estados Unidos.
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Já em 2021 teria sido a própria Jeanine Áñez que planejava fugir ao Brasil, mas terminou sendo surpreendida pelas autoridades. Áñez viajaria num jato privado, saindo da cidade de Trinidad, Beni, rumo ao Mato Grosso do Sul. O plano teria recebido apoio de outros dois protagonistas do golpe: Carlos Mesa e Luis Fernando Camacho.
A ex-senadora teria sido alertada pelo procurador do estado de Beni, Marco Cossío, de que seria presa no dia 17 de março de 2021 por sua atuação no golpe, o que fez a polícia adiantar a operação de prisão preventiva para o dia 15 de março. Cossio renunciou ao cargo no dia 19 de março, alegando problemas de saúde. Áñez permanece presa desde então, condenada a dez anos de cárcere por se autodeclarar presidenta sem qualquer base legal.
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As investigações continuaram avançando e a última figura detida pelo caso Golpe de Estado I foi Luis Fernando Camacho, atual governador da província de Santa Cruz. A justiça decretou prisão preventiva por 4 meses para Camacho, em 30 de dezembro de 2022, por considerá-lo um dos autores do golpe de Estado.
"Houve mais do que um apoio moral ao golpe de Estado", analisa o cientista político boliviano, Yecid Velasco. Em entrevista ao Brasil de Fato, ele afirma que já se sabe que Bolsonaro também teria oferecido asilo a Camacho. "Queremos saber qual é o status dos ministros 'refugiados' no Brasil e esperamos que eles possam ser deportados para responder à justiça boliviana", defende.
Em 2019, Camacho, político de extrema direita, esteve ao lado de Áñez durante sua autoproclamação e chegou a realizar uma live em um dos salões do Palácio Quemado, sede do governo boliviano, estendendo uma bandeira boliviana no chão e lendo passagens da bíblia que, segundo ele, justificavam a ação golpista.
No dia 13 de novembro de 2019, o governo brasileiro, sob gestão de Bolsonaro, foi um dos primeiros a a felicitar Áñez pelo início da "gestão interina" na Bolívia.
Reportagens investigativas do portal Página 12 levantaram registros pelo sistema FlightAware de viagens do avião presidencial da Força Aérea Boliviana (FAB 001), que mostram o deslocamento da aeronave de La Paz para Brasília no dia 11 de novembro, véspera da autoproclamação de Áñez. No mesmo mês, a aeronave ainda teria viajado ao Rio de Janeiro e a Manaus.
Tanto após a prisão de Camacho, como no caso de Áñez, a família Bolsonaro saiu em defesa dos golpistas, afirmando que seriam vítimas de uma "ditadura". O governo brasileiro anunciou que iria oferecer asilo à ex-senadora e, em mais de uma ocasião, Jair Bolsonaro também disse que se perdesse as eleições, não teria o mesmo destino que Áñez.
"O governo de Lula será muito mais transparente e não irá se intrometer na justiça brasileira, mas creio que pode assegurar uma investigação transparente. Esperamos que ofereça essas informações à Bolívia para que os autores do golpe de Estado de 2019 sejam responsabilizados", diz Velasco.
Assim, com o início do terceiro mandato de Lula, Arce pede cooperação entre as autoridades para elucidar os detalhes sobre a relação entre a gestão golpista na Bolívia e o governo de Jair Bolsonaro.
"Cada vez tenho menos dúvidas de que existe relação entre o golpe de Estado na Bolívia e a atuação de Bolsonaro. Isto está evidente de várias maneiras. Desde a cobrança no novo contrato de gás que assinamos, totalmente favorável ao governo brasileiro, até suas declarações de apoio a Áñez e o relato dos aviões que sugerem um encontro entre os dois no Brasil durante a instalação da operação", disse Arce.
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Durante a gestão de Áñez e Bolsonaro, as estatais Petrobrás e YPFB (Yacimientos Petrolíferos Fiscales Bolivianos) assinaram um contrato, prevendo que a YPFB pagasse pelo transporte de gás ao Brasil no trecho boliviano do gasoduto Gasbol, gerando um custo de cerca de US$ 70 milhões por ano.
Com início da gestão Arce, e em meio a divergências entre as duas empresas, em abril de 2022, a Bolívia reduziu 30% do abastecimento de gás ao Brasil.
Após receber denúncias da Bolívia, a Argentina abriu investigações contra o ex-presidente Mauricio Macri por sua cooperação com ações promovidas pela gestão golpista de Jeanine Áñez. A justiça confirmou que a gestão de Macri está envolvida no golpe da Bolívia com o envio de 70 mil cartuchos de munição AT 12/70. As munições que saíram do território argentino não foram declaradas no manifesto de carga, classificando um caso de contrabando.
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Agora a expectativa é que o Brasil siga o mesmo caminho argentino e ajude a Bolívia a revelar a verdade sobre o golpe de Estado de 2019. "É importante que no Brasil sejam abertas investigações para saber qual a relação de Bolsonaro com Jeanine Áñez, como a Argentina fez com Mauricio Macri", comenta Velasco.
Se para a Bolívia interessa revelar toda a verdade sobre o golpe de Estado, para o Brasil, o processo de investigação e penalização dos golpistas bolivianos pode representar um exemplo processual à justiça brasileira. Depois da decisão do pelo Supremo Tribunal Federal de anular os processos da Operação Lava Jato que resultaram na prisão de Lula da Silva e da extinção das ações do TRF-4 sobre as supostas "pedaladas fiscais" contra Dilma Rousseff, há ainda mais evidências para defender que em 2016 houve um golpe e em 2018 uma prisão abitrária.
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"A direita nunca dorme. Vemos isso agora na Bolívia, com a presença de um eurodeputado do partido Vox nas paralisações na província de Santa Cruz, dizendo que é um observador do processo aberto contra Camacho", afirma o cientista político boliviano.
No dia 1º de janeiro, sob os gritos de "sem anistia", o público que acompanhou a posse de Lula na Esplanada dos Ministérios, deixou claro que, assim como os bolivianos, demandam verdade, justiça e reparação sobre os impactos da gestão do último presidente.
Edição: Arturo Hartmann