Coluna

Quando a propriedade vale mais que a vida

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Em frente ao MPF, famílias da ocupação Luiz Gama protestam, na última segunda (19) - MLB/RJ
No centro do debate das decisões está a defesa da propriedade, ainda que abandonada

No último dia 16 de dezembro, faltando uma semana para o Natal, 70 famílias da ocupação Luiz Gama do Movimento de Luta nos Bairros, Vilas e Favelas (MLB) foram expulsas de forma forçada de um prédio no centro do Rio, que estava abandonado há mais de 10 anos.

Em 2021, essas famílias tinham ocupado um prédio público estadual e, diante da promessa do estado de construção de 150 unidades de moradia a serem destinadas a elas, saíram com o esperançar de que finalmente teriam seu direito à moradia digna conquistado. 

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Após 1 ano e meio de espera, sem indicativo de que a promessa se cumpriria, resolveram mais uma vez ocupar um prédio abandonado. Buscavam o retorno do diálogo dos poderes públicos, mas queriam algo concreto, não as promessas vazias, típicas quando se vivencia ausências de direitos.

São famílias que compõem o déficit habitacional do Estado do Rio de Janeiro, que vivem em coabitação, imóveis precários cedidos ou em ocupações precárias, que a qualquer tempo podem ser despejadas. São mulheres, em sua maioria solteiras e integrantes de famílias monoparentais.

Mas esse sonho ruiu com a decisão de reintegração dada pelo Desembargador Francisco Assis, da 14ª Câmara Cível, que atendeu ao pedido do proprietário por uma reintegração imediata, 24 horas para as famílias saírem voluntariamente, que foi corroborada pelo STF, por meio de decisões em duas Reclamações Constitucionais que tiveram o Ministro Gilmar Mendes como relator. 

No centro do debate das decisões está a defesa da propriedade, ainda que abandonada. O atual proprietário do prédio o adquiriu por mais de R$ 3,3 milhões em 2014 e desde então deixou de pagar o IPTU do imóvel devendo à Prefeitura cerca de R$ 400 mil.

Para eles, essa propriedade deve ser protegida. As vidas não. As famílias sem moradia podem viver a insegurança de nossas marquises. Em sua decisão, o Desembargador afirma que “(…) casos referentes a ocupações irregulares por grupos vulneráveis têm se tornado corriqueiros nesta Egrégia Corte de Justiça, (...) em que se vilipendia o direito fundamental à propriedade, sendo necessária a imediata intervenção do Poder Judiciário, com o desiderato de manter a ordem pública”. Reconhece que são famílias que precisam de moradia, mas, ainda assim, opta por expulsá-las.

A defesa da propriedade absoluta contraria a Constituição de 1988, que estabeleceu a função social como marco para se falar em propriedade. Assim, uma propriedade que não cumpre com sua função social, em estado de abandono, não pode ser protegida pelas ações possessórias.

Infelizmente, é o padrão do nosso sistema de justiça interpretar visceralmente em defesa da propriedade privada. Em geral, o sistema de justiça vê as ocupações coletivas por moradia como ações de desordem pública, ameaça à segurança jurídica, ainda que reconheça o estado de vulnerabilidade dessas famílias.

Os argumentos na defesa da propriedade nos remetem aos embates vivenciados pelo grande jurista Luiz Gama no séc. XIX, homenageado pelas famílias com seu nome à ocupação. Luiz Gama foi um defensor da liberdade de homens e mulheres negros/as transformados/as em mercadorias, em propriedades. Em um dos seus textos na imprensa, ele denunciava o caso de uma escrava cuja vida estava sendo ameaçada pelo dono, um juiz. Na defesa da mulher escrava, Luiz Gama utilizou-se da medida jurídica de depósito fiel da mercadoria, para permitir que a escrava pudesse se deslocar em garantia da sua vida, mas tal requerimento foi negado pelo juiz, também proprietário de escravos.

Gama denuncia essa “tecnicidade”, uma interpretação que se pretende estritamente legal, quando de fato, expressa uma concepção social hegemônica dos proprietários, defesa que ainda hoje se faz. Saem os corpos negros e entram a terra e/ou imóvel urbano. Uma propriedade acima da vida.

No STF, o Ministro Gilmar Mendes compreendeu que o paradigma previsto pela decisão cautelar na ADPF 828 não se aplicaria ao caso por ser ocupação datada de novembro de 2022. Desconsiderou que a última decisão na ADPF 828, de 31 de outubro, teve o objetivo de instaurar uma nova cultura jurídica para o trato dos conflitos coletivos fundiários, com a necessidade de realização de audiência de mediação e inspeções judiciais pela instância de mediação de conflitos fundiários que devem ser criadas pelos Tribunais.

O mais grave é que há uma mesa de negociação junto ao MPF com órgãos habitacionais, para garantir moradia às famílias como condição à desocupação voluntária do imóvel.

Se a moradia é um direito fundamental então, por que nosso sistema de justiça ignora a Constituição quando em causa está a propriedade?

*Ana Claudia Diogo Tavares, Professora do programa de Mestrado em Políticas Públicas em Direitos Humanos PPDH/UFRJ e do NEPP-DH/UFRJ e doutora pelo CPDA/UFRRJ. É advogada popular e coordenadora do Núcleo de Assessoria Jurídica Popular Luiza Mahin.

**Fernanda Maria da Costa Vieira – Professora do programa de Mestrado em Políticas Públicas em Direitos Humanos PPDH/UFRJ e do NEPP-DH/UFRJ e doutora pelo CPDA/UFRRJ. É advogada popular e coordenadora Núcleo de Assessoria Jurídica Popular Luiza Mahin.

***Mariana Trotta Dallalana Quintans, Professora do programa de Mestrado em Políticas Públicas em Direitos Humanos PPDH/UFRJ e da FND/UFRJ e doutora pelo CPDA/UFRRJ. É advogada popular e coordenadora Núcleo de Assessoria Jurídica Popular Luiza Mahin.

****Hugo Gomes Ottati de Menezes, advogado, integrante da Comissão de Direitos Humanos e Assistência Judiciária da Ordem dos Advogados do Brasil – CDHAJ/OAB-RJ.

*****Francisco Trope da Silva Porto, graduando da FND/UFRJ e integrante do Núcleo de Assessoria Jurídica Universitária Popular (NAJUP) Luiza Mahin, endereço eletrônico

******Mariana Guimarães de Carvalho, graduanda da FAU/UFRJ e integrante do Núcleo de Assessoria Jurídica Universitária Popular (NAJUP) Luiza Mahin.

*******Matheus Oliveira Nascimento, graduando da FND/UFRJ e integrante do Núcleo de Assessoria Jurídica Universitária Popular (NAJUP) Luiza Mahin.

********As opiniões expressas nesse texto não representam necessariamente a posição do jornal Brasil de Fato.

Edição: Vivian Virissimo