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Conseguimos comemorar a vitória dos argentinos sem invejá-los?

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O capitão da Argentina, Lionel Messi, levanta o troféu da Copa do Mundo 2022
O capitão da Argentina, Lionel Messi, levanta o troféu da Copa do Mundo 2022 - Kirill Kudryavtsev/AFP
Narciso ama o que é espelho, como enxergar além da própria imagem?

“20 anos depois a América do Sul volta a ser campeã da Copa do Mundo, através da Argentina”. Seria uma maneira honesta de noticiar a vitória dos hermanos, mas assim tiraríamos os mesmos do centro da notícia. Será que tornaria o resultado dessa Copa mais palatável para alguns? É tempo de luto e também de festa, afinal, perdemos e ganhamos.

A derrota da seleção brasileira desnorteou os esperançosos torcedores do país do futebol. Os mais fanáticos desligaram sua TV ou até mesmo a transmissão de um tal de Casemiro que ficou muito famoso por fazer o que o Faustão - nas vídeo cassetadas - e suas vizinhas (ou talvez até você) fazem de melhor: comentar sobre a vida dos outros.

Mas chegou a hora de escolher para quem torcer. A galera do Marrocos foi uma boa opção, afinal, chega de viver imerso na lógica eurocêntrica. Infelizmente eles também perderam. Ok, vida que segue. A França, que futebol bonito, dizem. Digo “dizem” porque em horário de jogo gosto mais de sair pedalar e as vezes observar aqueles que ainda não cansaram de implorar por intervenção militar, do que propriamente assisti-lo. Mas é bacana ler notícias e escutar o povo comentando na academia. Então, seria torcer pelo tal do “futebol bonito” francês uma maneira menos explícita de frisar que a derrota dos hermanos seria uma vitória do Brasil?

Bem, no fim, muitos se renderam e comemoraram o triunfo argentino. “Pelo menos são da América do Sul” e “o Messi merece a taça antes de se aposentar” são plausíveis justificativas. Eu realmente não me importo, embora fique pensando o porquê preciso tanto afirmar isso… 

E sobre a rivalidade Brasil x Argentina, penso, não de forma inédita, no interessante conceito Freudiano chamado “narcisismo das pequenas diferenças'', a ideia geral é que nosso maior inimigo não são aqueles completamente diferente de nós, mas aqueles que fazem fronteira conosco. No texto "Mal Estar na Civilização" (1930) o próprio Freud cita a rivalidade entre Brasil e Argentina.

É interessante pensarmos justamente nas inúmeras aproximações existentes entre nossos países, mas são as diferenças que marcamos nos nossos discursos. Por que será? E talvez só é possível suportar uma aproximação com o outro (seja o vizinho do mesmo andar ou daqueles autodenominados patriotas que perderam e não aceitaram o resultado das eleições) construindo uma diferença que assegure uma estabilidade da nossa própria imagem? Algo que nos coloque num degrau narcísico acima? Que imaginariamente nos situe numa posição superior?

E para sustentar esse lugar, acabamos projetando as partes nossas que não gostamos nos outros: são as vizinhas que fofocam, são todos os “bolsominions” que precisam amadurecer, é a torcida da Argentina que fez um canto racista e transfóbico a respeito do atacante Mbappé. Mas então, o que nos causa um desconforto não seria justamente perceber que somos muito mais semelhantes do que suportamos? Que aquilo que criticamos nos outros também pode ser reconhecido em nós?

E de que outra forma poderíamos sustentar nossa singularidade sem entrar em guerra com o outro? Narciso ama o que é espelho, como enxergar além da própria imagem? Será que a vitória do outro semelhante é tão ameaçadora assim para o meu próprio eu? Conseguimos comemorar a vitória dos argentinos sem invejá-los? Aparentemente sim, pero no mucho.

* Este é um artigo de opinião. A visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato.

Edição: Katia Marko