Telemedicina, medicamentos, capacitação profissionais de saúde e informação. As soluções da ciência para garantir o direito ao aborto e reduzir a mortalidade de mulheres são muitas. Algumas delas já são aplicadas no Brasil, mas em pequena escala e sem status de política pública.
Com apoio do Instituto Serrapilheira, a Gênero e Número e a Global Health Strategies, consultoria de comunicação e advocacy em saúde global, apresentam uma série de quatro reportagens com um mergulho em problemas e soluções para garantir o direito à saúde das mulheres no Brasil.
Aborto inseguro afasta Brasil de meta da redução da mortalidade materna
O Brasil tem uma dívida com a saúde das mulheres, principalmente com aquelas que enfrentam complicações na gravidez. Como parte das Metas de Desenvolvimento do Milênio da Organização das Nações Unidas (ONU), o país firmou o compromisso de reduzir as mortes maternas para menos de 35 a cada 100 mil nascidos vivos até 2015. Mas com a pandemia, o país chegou a registrar 107,53 mortes a cada 100 mil nascidos vivos em 2021, conforme dados preliminares do Ministério da Saúde mapeados pelo Observatório Obstétrico Brasileiro.
Até o início do segundo semestre de 2022, a Razão de Mortalidade Materna Materna (RMM) ainda era de 60 óbitos por 100 mil nascidos vivos, número muito distante de países da Europa Ocidental, que registram menos de 10, de acordo com levantamento do Banco Mundial (2017). A nova meta, estabelecida para 2030, é de 30 óbitos por 100 mil nascidos vivos.
São consideradas mortes maternas aquelas decorrentes de problemas relacionados ou agravados pela gravidez, durante a gestação ou até 42 dias após o parto. Os motivos mais frequentes, segundo o Sistema de Informação sobre Mortalidade (SIM), são hipertensão, hemorragias graves, infecções, e abortos inseguros. Estas são mortes evitáveis, mas, no Brasil, parecem naturalizadas.
"As mulheres com maior risco de morte e sequelas de abortos inseguros são as mais jovens, indígenas, negras e residentes em áreas urbanas de periferia ou rurais, sem acesso a transporte público, mais pobres, com menos educação formal e menos informações sobre saúde sexual e reprodutiva. Elas estão mais expostas a relacionamentos abusivos e violência sexual. Nesse contexto, o alcance da meta relacionada à redução da mortalidade como parte dos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável ainda está muito distante da realidade", reflete Beatriz Galli, assessora da Ipas Partners for Reproductive Justice, organização internacional sem fins lucrativos que trabalha com direitos sexuais e reprodutivos.
Como o aborto inseguro coloca em risco a vida das mulheres
De acordo com informações da Organização Mundial da Saúde (OMS), 25 milhões de abortos inseguros são realizados anualmente no mundo, o que resulta em uma taxa de mortalidade de 4,17% a 13,8%. Nos países em que a prática é legalizada, a taxa de procedimentos inseguros é de apenas 10%, enquanto naqueles onde o aborto é proibido, esse índice sobe para 25%. Ainda de acordo com a OMS, o aborto inseguro está entre as cinco principais causas de morte materna no mundo.
A OMS define aborto inseguro como um procedimento para o término da gestação, realizado por pessoas sem a habilidade necessária ou em um ambiente sem padronização para a realização de procedimentos médicos ou a conjunção dos dois fatores.
A pandemia agravou este quadro. No Brasil, entre 2016 e 2020, foram notificados 300 casos de morte com aborto como causa básica, a maior parte identificada como "aborto não especificado". "Em ambientes [países] onde o aborto é criminalizado, como no Brasil, é difícil definir ou registrar a causa da morte. Isso requer estratégias diferentes, como o uso de pesquisas de campo, com respostas apontadas sob sigilo", explica Cristião Rosas, ginecologista e obstetra, representante no Brasil da Rede Médica Pelo Direito a Decidir.
Devido à criminalização do aborto e a outras razões que contribuem para a subnotificação, como a qualidade da investigação das mortes, esse número pode ser muito maior. De acordo com o estudo "Causas múltiplas de mortalidade materna relacionada ao aborto no Estado de Minas Gerais", de Eunice Francisca Martins, estima-se que, ao analisar as causas secundárias da mortalidade materna, o número de óbitos associado ao aborto seja 38% maior do que o identificado pelas estatísticas oficiais.
Os dados de internações hospitalares por aborto também são subnotificados: "Não é possível cravar onde o aborto inseguro aparece no DATASUS porque não existe uma classificação para aborto provocado e que não seja o das vias legais", explica Cristião. A classificação "Outras gravidezes que terminam em aborto" aparece como a mais frequente causa de internação hospitalar.
Hoje, o aborto é uma intervenção segura e de baixo risco para as mulheres, quando realizado em condições adequadas. A OMS recomenda o uso do misoprostol, para estimular as contrações, e da mifepristona, para induzir o aborto. Este último medicamento carece de solicitação junto à Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) para uso no Brasil.
As restrições de uso hospitalar acarretam limitações para regulamentações e mais burocracia para aquisição, armazenamento e dispensação do misoprostol. Um documento da Rede Médica Pelo Direito a Decidir em abril de 2022 recomenda "que as autoridades sanitárias brasileiras promovam urgentemente as ações necessárias para retirar as restrições impostas sobre a dispensação do medicamento, garantindo, assim, acesso a esse medicamento essencial para a saúde reprodutiva de meninas e mulheres brasileiras e em respeito às suas garantias constitucionais".
As ameaças aos direitos reprodutivos e sexuais
Reduzir a Razão de Mortalidade Materna para, no máximo, 30 mortes por 100 nascidos vivos continua a ser um objetivo a ser alcançado. Desta vez, a linha de chegada é 2030, como parte dos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS), da ONU. Para isso, o governo brasileiro precisa assegurar o acesso universal aos serviços de saúde sexual e reprodutiva, incluindo planejamento reprodutivo.
No entanto, estes direitos ainda são ameaçados. Em 2022, o Ministério da Saúde lançou um manual chamado "Atenção técnica para prevenção, avaliação e conduta nos casos de abortamento". Este documento foi recebido com duras críticas por organizações da sociedade civil, associações médicas e de pesquisa, já que distorcia informações básicas sobre o aborto previsto na legislação brasileira.
"Nele podemos destacar dois pontos que atentam contra os direitos das mulheres: a necessidade de investigação policial nos casos de gravidez decorrente de estupro e a negação de que a mortalidade materna não é problema de saúde pública, sendo que óbitos por abortamento são uma das principais causas de mortalidade materna no Brasil", enfatiza Cristião Rosas.
Ainda assim, ele afirma que é possível reduzir a mortalidade materna no Brasil:
"Com determinação do Estado é possível. A maneira mais factível de se atingir as 30 mortes por 100 mil nascidos vivos mencionadas nos ODS é assegurando o acesso universal aos serviços de saúde sexual e reprodutiva de alta qualidade, baseadas em evidências científicas, e o acesso à informação e acabando com todas as formas de discriminação contra mulheres e meninas".
As barreiras ao aborto medicamentoso no Brasil
Conhecido no Brasil pela marca Cytotec, o misoprostol é registrado para uso hospitalar pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) como medicamento para indução do parto e interrupção da gravidez. O misoprostol também auxilia no tratamento de hemorragia pós-parto e no tratamento de aborto incompleto, seja provocado ou espontâneo. Ao longo dos anos, se tornou a droga mais utilizada para abortos no Brasil.
O medicamento foi introduzido no Brasil para tratamento de úlcera gástrica e era comercializado em farmácias sem exigência de receita médica. Diversos estudos apontam que foram as mulheres do Nordeste que descobriram o uso abortivo do medicamento, com a ajuda de farmacêuticos. Apesar de ter sido comercializado em 72 países no final dos anos 1980, foi somente no Brasil que a utilização do Cytotec como método abortivo ganhou visibilidade.
Segundo o estudo "20 anos de pesquisas sobre aborto no Brasil", entre as mulheres que declararam ter induzido o aborto nos anos 1990, entre 50,4% e 84,6% utilizaram o misoprostol como abortivo, um aumento significativo, se comparado com seu uso nos anos 1980, de 10% a 15%.
A entrada do misoprostol no cenário das práticas abortivas provocou uma mudança na saúde das mulheres, que costumavam utilizar objetos perfurantes, chás e ervas e mesmo líquidos cáusticos como abortivo, que aumentavam o risco de complicações e morte. Em 1998, a Anvisa publicou uma resolução que controla o misoprostol até hoje.
Um estudo publicado no Journal of Public Health Policy (EUA) em 2012 analisou países da África, Ásia e América Latina e colocou o Brasil ao lado apenas do Vietnã entre os que possuem maior restrição ao acesso ao aborto farmacológico no mundo. A diferença é que, no Vietnã, há registro para a mifepristona, tornando a regulação brasileira ainda mais restritiva que a do país asiático.
Restrições da Anvisa
A Portaria 344/1998 da Anvisa classifica o misoprostol como medicamento sujeito a controle especial, ou seja, deve ser prescrito com receita de controle especial, em duas vias. No entanto, de todas as substâncias constantes na lista, apenas o misoprostol sofre restrições de comercialização e uso, este último limitado ao ambiente hospitalar. Cada hospital público deve fazer um cadastro na Secretaria de Vigilância Sanitária do seu estado para receber o medicamento do Ministério da Saúde.
Mais de 20 anos se passaram e a resolução da Anvisa mantém essa posição, mesmo com evidências científicas recentes que constatam a segurança e a eficácia do misoprostol para o aborto induzido em ambiente ambulatorial ou domiciliar. Se utilizado principalmente nas nove primeiras semanas de gravidez, o medicamento apresenta efeitos adversos mínimos, como diarreia, vômitos, náusea e febre, que podem ser facilmente tratados por profissionais dos serviços de atenção primária. Além disso, o uso ambulatorial do misoprostol pode diminuir os custos para o sistema de saúde, já que não há necessidade de internação ou envolvimento de outros profissionais.
Em 2019, a Defensoria Pública da União (DPU), realizou uma audiência pública para propor novas resoluções à Anvisa, alegando que a proibição da venda de misoprostol em farmácias do Brasil não seguia justificativas médicas ou legais. O argumento da DPU era de que a restrição violava o direito à saúde de mulheres que querem interromper gestações em casos já previstos por lei. A audiência também abordou o direito à informação sobre misoprostol, vetado pela Anvisa.
Como resposta, a Anvisa alegou que "não pode realizar alterações de bula sem que haja uma solicitação formal da empresa detentora do registro do medicamento", a Hebron. O medicamento à base de misoprostol produzido pela Hebron, com o nome Prostokos, reforça em letras maiúsculas na bula: "ESTE MEDICAMENTO É DE USO RESTRITO A HOSPITAIS". Como não houve manifestação da empresa para incluir a possibilidade de administração domiciliar ou ambulatorial, a Anvisa diz que não há nada a fazer.
Em abril de 2021, a Anvisa fez uma Consulta Pública sobre a portaria que regula disponibilização e o comércio do misoprostol e outros medicamentos. Foram ao todo 307 respondentes, sendo 214 pessoas físicas e 93 pessoas jurídicas; 180 dos 214 respondentes eram profissionais de saúde.
Cerca de 30% dos respondentes enviaram argumentos contra a proposta, 27%, parcialmente a favor e 25%, a favor. Entre as organizações que enviaram pareceres em prol da redução das restrições sobre o medicamento, estão a Federação Brasileira das Associações de Ginecologia e Obstetrícia (Febrasgo), Sociedade Brasileira de Medicina de Família e Comunidade, Associação Brasileira de Saúde Coletiva (Abrasco) e a Defensoria Pública da União (DPU). Apesar da consulta pública, o parágrafo sobre misoprostol da Portaria segue inalterado.
Sobre os resultados da consulta pública, Anvisa informou à reportagem: "As contribuições recebidas no processo de revisão da Portaria SVS / MS 344 de 1998, ainda estão em fase de consolidação. O resultado da avaliação sobre as contribuições relacionadas a qualquer tema do texto será apresentado ao final do processo regulatório".
Confira quatro evidências científicas sobre o misoprostol e a mifepristona
1 - Um ensaio clínico duplo-cego com 441 mulheres grávidas da Tunísia e Vietnã avaliou a combinação mifepristona + misoprostol e o uso do misoprostol em regime domiciliar. Das 220 que tomaram a combinação, 92,9% concluíram o aborto; das 221 que tomaram o misoprostol, 78% interromperam a gestação A Organização Mundial da Saúde (OMS) recomenda duas possibilidades para o aborto com medicamentos: na combinação misoprostol + mifepristona, a chance de aborto completo é de 95% a 98%. No uso solo do misoprostol, a chance é de 75% a 90%
A OMS estima que, a cada ano, entre 4,7% e 13,2% das mortes maternas ocorram por complicações de aborto inseguro.
2 - O maior acesso a medicamentos à base de misoprostol, incluindo em farmácias, garante mais segurança na indução de abortos. Um estudo de 2017, realizado em 6 países da América do Sul (Argentina, Bolívia, Brasil, Colômbia, Peru e Uruguai), pelo Consórcio Latinoamericano contra o Aborto Inseguro (Clacai), concluiu que o Brasil é o que tem a legislação mais restritiva e o único que não disponibiliza o misoprostol para venda em farmácias ou nos serviços de saúde. ←
A mudança de métodos mais arriscados — como o uso de agulhas — para menos arriscados — como o uso de medicamentos — está relacionada à diminuição nos casos de complicações por aborto.
3 - Em um estudo de 2015, 154 participantes com abortos incompletos foram randomizadas para receber 3 doses de misoprostol no hospital ou para receber a primeira dose na clínica e autoadministrar as duas doses seguintes em casa. Os autores não encontraram diferença na eficácia do tratamento (acima de 85%), tampouco nos eventos adversos entre os grupos.
Uso domiciliar do misoprostol é opção segura e eficaz para as mulheres
4 - Em um estudo de 2017, foi avaliada a eficácia do uso do misoprostol em gestações inviáveis no primeiro trimestre, com o uso do remédio em casa. A experiência de 4 anos demonstrou que a administração do misoprostol em casa é uma opção eficaz e segura: mais de 90% das mulheres tiveram o tratamento completo e não precisaram de intervenção cirúrgica; a taxa de complicação foi de apenas 0,61%.
Telemedicina: tecnologia utilizada para aborto na pandemia é segura e mais barata
Durante a pandemia, o Reino Unido ofereceu uma solução para mulheres em busca do aborto seguro em casa. Na última semana de março de 2020, quando a média de casos de covid-19 chegava a 3.300, o serviço público de saúde tentou aliviar as demandas em hospitais e clínicas com interrupção da gravidez via telemedicina, poupando tempo de pacientes e funcionários.
Foi quando um grupo de cientistas e médicos, liderados pelo Royal College of Obstetricians and Gynecologists, realizou um estudo comparativo sobre a eficácia do aborto medicamentoso via telemedicina — sem a necessidade de ultrassonografia — e em consulta médica presencial — com ultrassonografia e medicação para realizar o procedimento em casa.
Um total de 52.142 mulheres que buscavam interromper a gravidez antes de dez semanas passaram por uma dessas modalidades: 22.158 mulheres o fizeram na forma tradicional e 29.984 na modalidade de telemedicina. Os resultados não foram surpreendentes. Divulgados pelo International Journal of Obstetrics and Gynecology, os dados mostraram uma taxa de sucesso de 98,8% para o procedimento via telemedicina e 98,2% nas consultas presenciais combinadas com uso do medicamento abortivo em casa. Da mesma forma, confirmou-se que nos abortos domiciliares não houve casos de alto risco à saúde das mulheres e 96% delas relataram total satisfação com o atendimento e resultados.
O modelo de acesso ao aborto por telemedicina no Reino Unido — semelhante ao que seria implantado naquele mesmo ano em Uberlândia (MG), pela ginecologista Helena Paro, do Programa Nuavidas (Núcleo de Atenção Integral a Vítimas de Agressão Sexual), do Hospital de Clínicas — seguiu protocolos médicos que garantem a segurança e saúde da paciente. A única observação foi sobre a ultrassonografia, que seria necessária caso houvesse histórico de sintomas que apontassem alto risco à saúde.
Houve achados importantes, dentre eles a redução do tempo de tratamento em quatro dias via telemedicina. A nova abordagem durou 6,5 dias, enquanto as consultas tradicionais levaram em média 10,7 dias. E a economia não foi só de tempo, mas também de custos do sistema de saúde: menos complicações e menos necessidade de optar pelo aborto cirúrgico e internações.
Em pouco tempo, as autoridades tornaram efetivo o uso de pílulas abortivas para uso doméstico em casos de gravidez com menos de dez semanas de gestação, o que rapidamente se tornou o método mais comum, totalizando 47% de todos os abortos no Reino Unido de abril a dezembro de 2020.
Nosso estudo mostra que o aborto previsto em lei está concentrado em poucos municípios do país, consequentemente, com custo e tempo de viagem que provavelmente chegam a inviabilizar o acesso.
Para a doutora em saúde coletiva Marina Jacobs, o método poderia ter um impacto positivo no Brasil: "Nosso estudo mostra que o aborto previsto em lei está concentrado em poucos municípios do país, consequentemente, com custo e tempo de viagem que provavelmente chegam a inviabilizar o acesso. Considerando que o aborto nas situações previstas em lei é um serviço em saúde e deve ser de acesso universal, sua oferta na atenção primária e via telessaúde podem ser alternativas, comprovadamente seguras, para promover o cuidado de grande parte das pessoas que precisam interromper legalmente uma gravidez."
Na primeira semana de agosto de 2020, Uberlândia atingia 3.900 novos casos de coronavírus. Com uma população estimada em 700 mil habitantes, esta cidade localizada ao Norte de Minas Gerais, a cerca de 130 km da divisa com Goiás, conta com dois hospitais públicos: o Hospital de Clínicas da Universidade Federal de Uberlândia e o Hospital Municipal Dr. Odelmo Leão Carneiro.
"As unidades de saúde estavam ocupadas com pacientes de covid e outros casos de saúde em geral. Havia poucos leitos", explica a médica Renata Catani, ginecologista do Programa Nuavidas.
Foi então que a equipe da ginecologista Helena Paro, do Programa Nuavidas, implementou atendimentos para aborto legal medicamentoso via telemedicina, uma alternativa às mulheres que haviam sofrido violência sexual e engravidaram. "Desde o início da pandemia queríamos avançar para dar assistência às mulheres que não pudessem vir de forma presencial", explica.
Os números sobre violência sexual sempre geraram um alerta constante na equipe das profissionais do Nuavidas: embora não pudessem dar solução aos mais de 214 casos de estupro no município em 2020, faz parte da rotina dos profissionais de saúde enxergar não apenas números, mas também histórias de vida.
O Hospital de Clínicas é um dos maiores do Brasil e recebe grande parte da população local e regional. A unidade ocupa sete quarteirões no bairro de Umuarama, na zona norte de Uberlândia. Uma rampa conecta internamente o Pronto Atendimento ao espaço do Nuavidas. Ali há salas ambientadas para receber mulheres, adolescentes e crianças. Na recepção de janelas internas, duas secretárias posicionadas atendem a mais de 50 pessoas por mês, por telefone ou pessoalmente.
A comunicação, divulgação e a tecnologia desenvolvidas pela equipe foram estratégicas para divulgar informações, esclarecer dúvidas sobre violência sexual. Durante a pandemia, foram organizadas mais de dez palestras online nos canais do Youtube do Nuavidas, que conta com mais de 500 inscritos, e na TV Universitária de Uberlândia, com 22.600 assinantes. Os vídeos com as profissionais da equipe se espalharam pelas redes sociais para falar sobre gênero, violência e cuidado.
O serviço virou assunto de reportagens nacionais e internacionais. As consultas telefônicas para o Programa chegavam de vários pontos do país. "Umas 30 por semana, tanto de adultas quanto de adolescentes e crianças, vítimas de violência sexual", explica a secretária do serviço, Aline Ferreira Cardoso.
"O primeiro caso que atendemos por telessaúde foi o de uma mulher do interior de São Paulo. Ela chegou de ônibus a Uberlândia para receber atendimento, buscar os medicamentos e voltar para o seu destino, onde fez o aborto acompanhada por nós, médicas, pela internet", conta Renata Catani, uma das duas ginecologistas do Nuavidas.
Brasil não proíbe aborto por telemedicina
Enquanto organizações internacionais como a OMS afirmavam que serviços de saúde reprodutiva e de planejamento familiar deveriam continuar funcionando durante a pandemia, o governo Bolsonaro se esquivava do assunto. Em 2020, um dado estarrecedor foi revelado pelo um estudo A tragédia da Covid-19 no Brasil: pelo menos 124 mortes maternas: oito em cada dez gestantes e puérperas que morreram de coronavírus no mundo eram brasileiras.
Na urgência de mudar esse cenário, a equipe do Programa Nuavidas, a Anis – Instituto de Bioética e a Rede Médica pelo Direito de Decidir prepararam uma cartilha de protocolos para aborto legal com medicamentos via telessaúde.
A Justiça Federal extinguiu recentemente uma ação do Ministério Público Federal, instaurada em 2021, contra o aborto legal por telemedicina. Isso quer dizer que não há até hoje nenhuma decisão judicial contra o aborto por telemedicina ou contra a cartilha. As pacientes hoje chegam no hospital e, após a primeira consulta, recebem um kit com medicamentos e instruções.
O Nuavidas não é nada inovador no seu procedimento de aborto medicamentoso via telemedicina. É inovador pelo tamanho da resistência que nós enfrentamos para implementar o serviço e para reduzir o aborto inseguro em Minas Gerais
Apesar das resistências dentro e fora do ambiente hospitalar, a iniciativa atendeu pelo menos 34 mulheres em 2021 e, até setembro de 2022, foram mais 20 mulheres. Entre 2021 e junho 2022, mais de 260 mulheres adultas e adolescentes buscaram atendimento no hospital por terem sido vítimas de violência sexual.
"O Nuavidas não é nada inovador no seu procedimento de aborto medicamentoso via telemedicina. É inovador pelo tamanho da resistência que nós enfrentamos para implementar o serviço e para reduzir o aborto inseguro em Minas Gerais", conclui Helena Paro.
Brasil limita informação sobre acesso ao aborto legal
No Brasil, as lacunas no acesso à informação sobre os serviços de aborto legal vêm do próprio poder público. Somente seis das 27 unidades federativas disponibilizam informação pública sobre aborto nos sites das secretarias de Saúde. Das 26 capitais, apenas quatro mantêm informações online. Uma pessoa gestante pode demorar, em média, de dois a três meses até achar um programa que a acolha.
Patrícia (nome fictício) chegou ao Programa Nuavidas (Núcleo de Atenção Integral a Vítimas de Agressão Sexual) do Hospital de Clínicas de Uberlândia (MG), no segundo trimestre da gravidez. Ela não sabia que tinha direito ao aborto legal por ter sofrido violência sexual e, muito menos, conhecia algum serviço que pudesse ajudá-la. Ela mora em Patos de Minas, onde vivem quase 140 mil habitantes, a cerca de 250 quilômetros de Uberlândia.
"Não fui perguntar no posto de saúde por medo. Eles não têm esse serviço e acham que é crime interromper a gravidez". Com 38 anos, ela cuida de crianças na vizinhança e divide a casa com três filhos e a mãe.
Em junho, a menstruação não veio. Foi quando ela desconfiou da situação de abuso pela qual tinha passado. Seguiram-se noites sem dormir, dias sem comer.
Num primeiro momento, a vítima da violência tende a apagar o que aconteceu e tem dificuldade de se expor, de ser julgada”, explica Luzia Silva dos Santos, psicóloga do Programa Nuavidas.
Ela fez o teste de gravidez e, neste momento, tomou uma decisão em silêncio, sem saber que colocava sua saúde em risco: comprou oito comprimidos de misoprostol por R$ 2.500 reais no mercado clandestino. Sem orientação médica adequada e por sugestão de um vendedor desconhecido, tomou todas as pílulas de uma vez. O procedimento não surtiu efeito e os sangramentos vieram com dor.
Semanas depois, numa manhã de julho, Patrícia assistia ao telejornal local. "Vi uma médica falando numa reportagem do direito ao aborto em caso de violência sexual e do Programa Nuavidas."
Eu não sabia nem que tinha direito [ao aborto legal]. Foi a minha salvação.
Em agosto, Patrícia entrou em contato com o Nuavidas e fez a primeira consulta e os exames. "Fui bem atendida, me senti cuidada e não julgada. Tive que voltar. Esse prazo de espera até voltar ao serviço foi um pesadelo."
Patrícia foi uma das 20 mulheres que receberam atendimento na unidade em 2022. Ela já estava no segundo trimestre de gestação. Um amigo a levou até o hospital de carro.
"É o único que sabe do assunto. Minha família acha que fui passear no final de semana. Paguei para ele R$ 300 de gasolina", conta. De ônibus, ela teria demorado quase seis horas, como foi no caso da primeira visita que fez ao hospital para o primeiro atendimento.
O acesso ao direito custa caro
No Brasil, a cada sete pessoas que fizeram um aborto legal entre 2010 e 2019, uma precisou viajar para acessá-lo, aponta a doutora em Saúde Coletiva, Marina Jacobs no estudo "Oferta e realização de interrupção legal de gravidez no Brasil".
E quanto menor o porte do município, maior o percentual de pessoas em trânsito. O trabalho também mostra que a disponibilidade de transporte público para esses deslocamentos é limitada, com tempo de viagem total (ida e volta) estimado entre 26 minutos a quatro dias e meio, e o custo de R$ 2,70 a R$1.218,06.
"A grande dificuldade é o acesso à informação. O Estado brasileiro, por lei, é obrigado a dar informações às mulheres sobre onde buscar os serviços de aborto. Deve ter atitudes ativas. No Brasil, são pouquíssimos os serviços que oferecem aborto legal e divulgam o serviço", diz Cristião Rosas, ginecologista obstetra, representante da Rede Médica pelo Direito de Decidir e ex-diretor do Serviço de Aborto Legal do Hospital Maternidade Vila Nova Cachoerinha.
No país, apenas 290 estabelecimentos oferecem aborto legal. Eles estão distribuídos em 3,6% (ou seja em 200) dos 5.568 municípios brasileiros, segundo a pesquisa de Marina Jacobs, doutora em Saúde Coletiva pela Universidade Federal de Santa Catarina. Esses estabelecimentos encontram-se majoritariamente no Sudeste (40,5%), em cidades de mais de 100 mil habitantes (59,5%) e de Índice de Desenvolvimento Humano Municipal alto ou muito alto (77,5%). Marina Jacobs estima que, a cada cinco mulheres que precisam de um aborto previsto em lei e vivem em municípios que não o oferecem, como o de Patrícia, quatro deixam de acessar o serviço. Em números, só em 2019, 1.570 interrupções de gestação podem ter deixado de ser realizadas em residentes de municípios que não ofertam o procedimento, segundo ela.
O caso da Argentina
Desde janeiro de 2021, o aborto na Argentina está descriminalizado por lei até 14 semanas de gestação. A conquista ocorreu em uma sessão parlamentar histórica, no penúltimo dia de 2020, em meio ao calor, pandemia e manifestações da maré verde que lotaram as ruas de Buenos Aires. Mais de 1,7 milhão de pessoas acompanharam a transmissão online. Até então, o país tinha a mesma legislação do Brasil: a interrupção da gravidez só era permitida em casos de estupro ou quando a saúde da mulher estava em risco.
A informação sempre foi parte de uma política do Estado argentino e a área da saúde nunca foi exceção. Durante os últimos dez anos, com diferentes presidentes, um serviço de 0800 sobre saúde sexual funciona em todo o país, de domingo a domingo, inclusive em feriados. Mesmo antes do aborto ser legalizado, o serviço já era um canal de escuta atenta e ativa em casos de gravidez indesejada, decorrente de estupro, métodos contraceptivos de emergência (e outros), doenças sexualmente transmissíveis e violência sexual e obstétrica.
À medida que o debate sobre a ampliação de direitos das mulheres tomou a agenda regional da América Latina, o 0800 ampliou o atendimento para consultas sobre direitos das pessoas LGBTQIA+, direitos das pessoas com deficiência, prevenção de gravidez na adolescência, obrigações do sistema de saúde público e privado, e reprodução assistida.
"Nas ligações, os atendentes encaminham a pessoa para um centro de saúde ou registram a solicitação e em até 72 horas a paciente receberá uma orientação", explica Victoria Pedrido, da Direção Nacional de Saúde Sexual e Reprodutiva.
O Sistema Único de Atendimento Telefônico à Saúde registra chamados de mulheres que buscam realizar um aborto em um centro médico da rede pública:
"Olá, boa tarde, onde posso acessar um procedimento de interrupção da gravidez? Eu só fiz o teste. Minha última menstruação foi em 8 de abril." Em consultas como esta, explicam Sandra Bernabó e Mariana Kielmanovich do Hospital Dr. Enrique Tornú, em Buenos Aires, as pacientes são atendidas também por email até serem encaminhadas a uma unidade de saúde próxima de sua casa. Embora não substitua uma consulta, o sistema e seus atendentes ajudam a explicar procedimentos e protocolos.
À medida que o debate sobre o direito ao aborto ganhou espaço na Argentina, a sociedade passou a querer saber mais, falar mais e perguntar mais. Os números 0800 mostram este aumento.
Se em 2010 foram 8 chamadas sobre interrupção da gravidez; em 2014 já foram 116 consultas; em 2018 foram 1.952 e em 2021 – com a aprovação da lei – foram 17.943 consultas telefônicas sobre protocolos e procedimentos (93%). Neste mesmo ano, foram 795 (4%) consultas sobre métodos contraceptivos e 459, por outros motivos (2%).
Assim como nos países onde o aborto é descriminalizado, na Argentina um dos métodos mais comuns é o procedimento de interrupção usando o misoprostol e, em menor grau, sua combinação com a mifrepristona. A equipe da Direção Nacional de Saúde Sexual e Reprodutiva explica que muitas mulheres realizam o procedimento em casa. "Elas ligam porque estão sozinhas e precisam de apoio. Pode acontecer que uma pessoa ligue em um sábado às 17h, esteja fazendo o procedimento de aborto medicamentoso, tenha uma série de dúvidas e não consiga esperar segunda-feira para ir à consulta médica", diz Victoria Pedrido.
– Alô, boa tarde, aqui é do Ministério da Saúde.
– Olá. Fiz a interrupção [da gravidez] e quero saber se o que está acontecendo comigo é normal, pois quase não tive sangramento. Tenho dúvidas se o saco embrionário foi expelido.
– OK. Vou fazer uma série de perguntas sobre o uso do misoprostol, ok?
– OK.
– Quando iniciou o procedimento?
– Ontem às 4h da tarde.
– Como foi o uso das pílulas?
– Comecei às 4h com as primeiras, a segunda às 7h e a terceira às 10h.
– Quantos comprimidos?
– 3 doses de 4 comprimidos
– A cada 3 horas?
– Certo.
– Quantos comprimidos no total?
– 12
– Qual a via utilizada?
– Oral.
– Sublingual ou entre a gengiva e a bochecha?
– Entre a gengiva e a bochecha.
– E como foi o sangramento?
– Normal, entre coágulos, diarreia. Acho que ainda não expeli.
– Você tem consulta para acompanhamento?
– Não.
– De que parte da Argentina você é?
– Santa Fé [província ao norte de Buenos Aires]
– O procedimento indicado para o uso do medicamento está correto, dentro do protocolo do Ministério da Saúde. Os sintomas que você descreve estão dentro do esperado. De qualquer forma, após 7 a 14 dias de uso do misoprostol, é recomendável fazer uma consulta de acompanhamento, com uma ultrassonografia.
– Mas não posso ter complicações?
– Pelo que você descreve está tudo dentro dos sintomas previstos. Você tem contato com o médico que te acompanhou para a interrupção?
– Não.
– Posso pegar seus dados para que eles possam se comunicar com você e indicar uma consulta para check-up médico?
– Sim, por favor.
As ligações recebidas no 0800 estão de acordo com o que está previsto em lei: a maioria das chamadas acontecem no primeiro trimestre de idade gestacional (2.080 casos antes de 12 semanas de gravidez). Em menor proporção, casos no início do segundo trimestre e por fim, uma minoria no segundo trimestre tardio (102 casos de 16 semanas).
Capacitação dos profissionais de saúde
A capacitação dos profissionais da saúde e a implementação de métodos contraceptivos [e fundamental para o sucesso do serviço de interrupção da gravidez na Argentina. "No Brasil, não vamos conseguir parar o ciclo vicioso do aborto em situações de risco se houver resistência dos profissionais ou se não houver capacitação profissional sobre os métodos contraceptivos ou aborto previsto em lei", reflete o médico Cristião Rosas.
Desde a aprovação da lei na Argentina, o país conta com um programa nacional de capacitação profissional para a interrupção voluntária e legal da gravidez. O principal objetivo tem sido explicar o alcance da lei às equipes médicas da rede de saúde e atualizar os profissionais sobre dois protocolos de atendimento — aborto medicamentoso e aspiração manual endouterina (Ameu), método que demanda internação da paciente gestante por uma manhã.
Susane Hwang, médica na Maternidade Municipal de Cachoeirinha, na Zona Norte da cidade de São Paulo, conta que os protocolos municipais sobre como encaminhar as mulheres em casos de violência são parte fundamental para melhorar o atendimento relacionado ao aborto previsto em lei.
"Saber informar é fundamental para garantir plenamente os direitos sexuais e reprodutivos. Saber para onde encaminhar as mulheres, como e quais são os protocolos e leis que possam orientá-las. Mas também é fundamental que profissionais de saúde tirem dúvidas sobre os protocolos de atendimento e marcos legais, porque muitos não sabem o que fazer diante de uma mulher que chega na consulta", conclui Susane.