Patrimônio Cultural Imaterial do Brasil, o samba conquistou lugar de referência através de muita resistência ao longo da história até ser celebrado em uma data reservada no calendário nacional: o Dia Nacional do Samba, em 2 de dezembro.
Muitos expoentes enfrentaram preconceitos, opressão e racismo até conquistar o direito de se manifestar através do samba em uma época que o gênero musical era proibido e criminalizado. Um grande exemplo é a dona Hilária Batista de Almeida, mais conhecida como Tia Ciata. A sambista, mãe de santo e iniciadora da tradição das baianas quituteiras no Rio de Janeiro, foi uma das grandes influências para o surgimento do samba.
Tia Ciata viveu entre os anos 1899 e 1924 na cidade do Rio de Janeiro. Foi na região conhecida como Pequena África que acolheu grandes sambistas marginalizados, como Pixinguinha. No quintal de sua casa o primeiro samba foi gravado, a música “Pelo Telefone” em 1916.
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Gracy Mary Moreira é bisneta de Tia Ciata e sambista, ela conta em entrevista ao programa Bem Viver, uma parceria do Brasil de Fato com a rede TVT, que o legado que sua bisavó deixou para todos que fazem samba, em especial para as mulheres, é algo que jamais será apagado.
“O samba vem das nossas raízes culturais e que nós transmitimos através desse ritmo raiado que se encontra não só no Brasil, mas no mundo. Como Tia Ciata fez e eu posso dizer que essa memória viva faz com que as pessoas se movimentem e principalmente as mulheres que ainda estão impulsionando o samba”, explica Gracy.
Mais que expressão cultural, o gênero revela parte da história que tentaram apagar da cultura do povo negro, uma vez que a junção de diversos ritmos que os povos escravizados trouxeram para o Brasil formaram o samba. Na avaliação de Gracy, a discriminação e marginalização do samba acontecia justamente por preconceito pelas suas raízes africanas.
“O samba é uma coisa fabulosa, é uma maneira de se expressar e nessa maneira de se expressar para muitos foi equivocada porque não queriam que contassem a verdadeira história do Brasil, tanto que quando a gente fala em samba no exterior eles identificam logo como a identidade do Brasil e que é uma verdade, a identidade do Brasil é o samba”, diz.
A doutora em história comparada e pesquisadora em cultura afro-brasileira, Helena Theodoro, acrescenta que além do samba de rua, as escolas de samba são construídas como representação africana.
“A gente tem na escola de samba o processo de reconstrução da família afetiva africana que foi desmembrada e desbaratada com o processo escravagista. A escola de samba se fosse criação de um europeu já teria ganhado o prêmio Nobel porque é um espaço de encontro de pessoas, é um espaço de alta criatividade, todo ano se faz poesia e se faz música em torno de um mesmo tema”, explica.
Helena explica também que é muito importante manter viva a história do povo negro para que as pessoas possam se encontrar com suas origens. Para ela, “a gente tem um desconhecimento muito grande da África de hoje e da África de ontem. No Brasil nós tivemos 500 anos do processo escravagista, a história de África tem 10 mil anos. Somos os criadores do processo civilizatório dos seres humanos na Terra”.
“Tia Ciata representa para nós o símbolo da mulher que não é costela de Adão nem metade de laranja de ninguém, somos inteiras, somos descendentes da rainha de Sabá, de Cleópatra, de Nefertiti, da rainha Njinga de Angola, de Tereza do Quariterê, de uma série de líderes que inclusive criaram o samba de roda e criaram todo um conhecimento de ervas para curar, foram as baianas quituteiras”, conta a pesquisadora.
Mulheres que fazem samba
Prova de que o legado de Tia Ciata vive são as mulheres que fazem samba atualmente. Apesar dos tempos terem mudado o preconceito ainda existe, mas através do ritmo elas mostram que esse espaço também pertence a elas.
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Fabíola Machado é sambista integrante do grupo carioca Moça Prosa, formado só por mulheres. Elas começaram a fazer samba na Pedra do Sal, região da Pequena África.
“A princípio eles [os homens] iam pra roda para ver quem são essas 12 mulheres fazendo samba, num lugar de curiosidade, num lugar de vou lá e quem sabe, né? Tem a mulherada lá’ e no início eles queriam sentar na nossa roda, ensinar como fazia porque na verdade nós criamos uma forma da gente fazer”, conta a sambista.
Para Fabíola, Tia Ciata é grande influência, não só para ela, mas também para outras mulheres fazedoras de samba da atualidade. “Eu vejo Tia Ciata como uma articuladora, uma mãe pequena abrigando todos na sua casa, agindo de forma política para que o samba continuasse, que ele estivesse vivo e que existisse esse legado que hoje a gente dá continuidade assim como todas as outras mulheres”, finaliza.
Edição: Mariana Pitasse