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Com Lula, movimentos e organizações se preparam internamente para lutar por suas demandas

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Liderança indígena do povo Mbya Guarani, Kerexu compõe o grupo de trabalho dos povos originários dentro da equipe de transição do governo Lula - Katie Mähler
Governo não vai acabar sozinho com a fome, a agricultura familiar pode contribuir para isso

*Por Rafael Oliveira

Após a eleição de Luiz Inácio Lula da Silva para a presidência do Brasil, no último dia 30 de outubro, muito se discute sobre os desafios que o novo governo enfrentará pelos próximos quatro anos. Recuperação da economia, reposicionamento do país no cenário internacional, valorização da ciência, geração de empregos, preservação da biodiversidade e erradicação da fome são alguns dos pontos levantados na imprensa e em análises de conjuntura.

Conforme apontam lideranças de movimentos e organizações sociais e populares, os problemas sociais que assolam o Brasil devem ser enfrentados na coletividade. Retirar 33 milhões de pessoas de uma condição em que passam fome e atender outras 50 milhões em situação de insegurança alimentar, por exemplo, será um processo gradativo e o governo não o fará sozinho.

"A gente sabe o quanto essa construção política do processo eleitoral mobilizou muito a sociedade. Depois de seis anos do golpe contra o governo Dilma, sendo quatro anos de Bolsonaro, a gente conseguiu construir no processo eleitoral um conjunto de proposições que a sociedade se mobilizou muito, mas não só para reeleger Lula para um outro mandato. Houve um esforço coletivo de organizar melhor as nossas demandas", avalia Carlos Eduardo de Souza Leite, membro da Coordenação Geral do Sasop, em referência à carta-compromisso Agroecologia nas Eleições, da Articulação Nacional de Agroecologia (ANA), que apresentou recomendações e demandas a candidatas e candidatos aos poderes executivo e legislativo, como forma de contribuir para o debate e a construção de  políticas públicas capazes de responder à fome e à crise ambiental.

Para Leite, que também compõe o Núcleo Executivo da ANA, um grande desafio para os movimentos sociais é a reconstrução dos espaços de participação democrática e controle social das políticas públicas - prática inviabilizada pela gestão do presidente Jair Bolsonaro. "Nós conseguimos, ao longo dos governos Lula e Dilma, criar uma cultura de conselhos e conferências, o que é muito importante, e devemos retomá-los numa perspectiva nova. Já estamos pautando a retomada imediata do Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (Consea), porque é ali que teremos um direcionamento na discussão de combate à fome e retomada da política de segurança alimentar".


Retomada imediata do Consea é pauta prioritária para movimentos e organizações sociais, afirma Carlos Eduardo Leite, integrante da coordenação da ONG Sasop e do Núcleo Executivo da ANA / Reprodução

"Esse tema da participação social e democrática é fundamental para termos espaço de interlocução, dada a amplitude da frente que ganhou as eleições. O desafio é disputar na sociedade e internamente no governo para que as pautas do movimento agroecológico sejam garantidas no sentido da recuperação de direitos sociais, econômicos e ambientais", completa Leite.

No que se refere ao enfrentamento da fome e à promoção da soberania e segurança alimentar e nutricional, Leite destaca que uma das principais reivindicações das organizações e movimentos sociais deve ser o apoio direto à agricultura familiar para viabilizar o aumento do volume de alimentos produzidos. Segundo ele, desenvolver ações nessa perspectiva e pressionar o governo a tomar medidas imediatas é fundamental para a retirada do país do Mapa da Fome da Organização das Nações Unidas (ONU). 

"Tendo a achar que o enfrentamento à fome unifica muito os setores, não só dos movimentos populares e sociais e da agroecologia, mas talvez seja um tema que mobiliza a sociedade como um todo. O tema da fome traz uma capacidade de mobilização muito grande, é uma resposta importante pro povo brasileiro A agricultura familiar, por sua vez, perdeu todos os seus subsídios. Nos governos Temer e Bolsonaro, não teve nenhum crédito, assistência técnica, fomento, tudo foi perdido. Precisam ser pensadas ações que comecem com a reconstituição de condições minimamente viáveis de produção de alimentos pela agricultura familiar".

O Programa de Aquisição de Alimentos da Agricultura Familiar (PAA) e o Programa Nacional de Alimentação Escolar (Pnae), determinantes políticas públicas no combate à fome e no apoio à produção e comercialização dos povos do campo, sofreram cortes ou não tiveram reajustes orçamentários durante os quatro anos de Jair Bolsonaro na presidência.

Conquista e defesa dos territórios

A  retomada das políticas públicas de fomento à produção de alimentos pela agricultura familiar caminha em conjunto com a urgente necessidade de concretização da reforma agrária no país, aponta a coordenadora nacional da Comissão Pastoral da Terra, Andréia Silvério. Em 2021, os recursos destinados ao Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) para aquisição de novas terras foram reduzidos drasticamente - R$ 930 milhões em 2011 para irrisórios R$ 2,4 milhões este ano.

"Diante de um cenário de desmontes, precisamos avançar na conquista de novas áreas para a reforma agrária e lutar pela demarcação e reconhecimento dos territórios das comunidades tradicionais e dos povos originários. É importante também que a gente consiga fazer uma inversão da lógica de produção que temos hoje no Brasil, para priorizar o cultivo de alimentos saudáveis, livres de agrotóxicos e que esses alimentos sejam voltados para a própria população brasileira", pontua Silvério.

 

Para a coordenadora da CPT,  Andréia Silvério, a presença dos movimentos e organizações sociais junto à base é fundamental para contribuir nos processos organizativos populares. Foto: Divulgação/CPT.

 

Segundo a coordenadora da CPT, é determinante que os movimentos sociais e as organizações da sociedade civil que acompanham esse processo de luta pela terra e de defesa dos territórios façam pressão sobre o novo governo para garantir o fortalecimento da agricultura familiar e a defesa do meio ambiente. "A avaliação que a gente faz é que essa luta por direitos sempre vai passar pela necessidade de mobilização popular constante. Com  organização e resistência dos povos, mas também com  participação social efetiva nos espaços de decisão".

Durante os quatro anos de governo de Jair Bolsonaro, os povos indígenas foram alvos constantes de todo tipo de violência do Estado. Segundo o relatório "Violência contra os Povos Indígenas no Brasil", do Conselho Indigenista Missionário (Cimi), em 2021, foram registrados 305 casos de invasões possessórias, exploração ilegal de recursos naturais e danos diversos ao patrimônio indígena em 22 estados da federação, atingindo 226 terras indígenas. De acordo com a publicação, 176 indígenas foram assassinados no período.

O caminho a ser percorrido pelo movimento indígena não será fácil, mesmo com a eleição do presidente Lula, segundo Kerexu, coordenadora executiva da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib). "Um desafio maior para nós hoje é fazermos de novo a retomada das demarcações dos nossos territórios. Esses processos foram paralisados e muitos entraves foram colocados para que não houvesse a demarcação durante esse governo".

"A partir do momento que nosso território começa a ser demarcado e também a gente tem a garantia da proteção territorial, a gente consegue implantar nosso modo e sistema de vida e a produção dos nossos alimentos", complementa a liderança do povo Mbya Guarani, que atualmente compõe o grupo de trabalho dos povos originários na equipe de transição do governo Lula. 

De acordo com Kerexu, os indígenas estão promovendo um significativo trabalho de base para se apropriarem do contexto que os envolve. "É um momento muito bonito dentro do movimento onde todo mundo quer participar, todo mundo quer entender o processo que está acontecendo hoje, desde a ponta até a base. A gente precisa participar, a gente precisa entender".

"O que eu sinto é como se a gente estivesse limpando um rio contaminado, que é um lugar onde ninguém quer estar, mas é necessário estar. Porque a gente depende desse rio. Nesse rio a gente vai encontrar muita coisa ruim, muita coisa podre, mas precisamos limpar, porque dependemos dele. Estamos neste momento da limpeza desse rio, para que a gente consiga de novo ter a nossa democracia e nossa participação, e sermos parte dela", finaliza a coordenadora executiva da Apib.

 

*Rafael Oliveira é comunicador popular da Articulação Nacional de Agroecologia.

**As opiniões contidas nesse artigo não representam necessariamente as posições do Brasil de Fato

Edição: Rodrigo Durão Coelho