O dia está chegando e a expectativa aumenta. A Copa do Mundo de 2022 terá início neste domingo (20), com a disputa entre Equador e o anfitrião Catar. Para a Argentina, a prévia trouxe bons ventos: no amistoso da última quarta-feira (16), emplacou 5 a 0 contra os Emirados Árabes. Jogadores de destaque na seleção mostram a que veio, com gols de Ángel di Maria, Joaquín Corres, Julián Álvarez, (que cumpre o sonho de estrear uma Copa ao lado de Messi) e do camisa 10. Esta deve ser sua última Copa de Lionel Messi.
Mas, fora do campo, há uma ausência que se faz sentir: esta será a primeira Copa da Argentina sem o ídolo do futebol, Diego Maradona.
“É estranho”, diz ao Brasil de Fato o jornalista esportivo Alejandro Verón, um dos fundadores da Igreja Maradoniana. “Vai ser duro não vê-lo quase caindo do camarote ou sendo o centro das atenções, na sala de imprensa, ou indo ao hotel visitar os jogadores argentinos.”
Além do marco da Copa, o próximo dia 25 de novembro será o segundo aniversário de sua morte. O ex-jogador deixou os estádios em 1997, há 25 anos. Posteriormente, empenhou uma carreira não muito próspera como técnico, mas sempre despertou paixões – seja de admiradores ou detratores. Muito amigo de Fidel Castro e abertamente defensor de políticas progressistas, nadou contra a maré de seu âmbito profissional. Também foram públicas situações de consumo problemático de álcool e drogas. E ninguém foi indiferente a Diego.
"É o herói plebeu, nacional e popular, o maior que a Argentina já teve. Um herói das classes subalternas", pontua o sociólogo argentino Pablo Alabarces, pesquisador de fenômenos de massas e cultura popular.
"Por que 'herói'? Porque ganhou uma Copa do Mundo sozinho, exatamente 4 anos e 15 dias após a rendição da Argentina [à Inglaterra] na guerra das ilhas Malvinas. Dessas coisas que não acontecem outra vez."
O D10s nos verá do céu
O fenômeno talvez tenha nascido mesmo ali, em 1986, quando Maradona garantiu com dois gols a vitória da Argentina contra a Inglaterra naquelas quartas de final, no México. Uma vitória simbólica, profundamente sentida por uma nação latino-americana que ainda processava todas as perdas que implicaram a guerra das Malvinas contra os ingleses – invasores, até hoje, da ilha no sul argentino.
“O Diego é um pouco do que nós, argentinos, somos”, opina Verón. “Queremos ser Messi, penteado, bem educado, que marca a diferença, mas por outro lado somos Maradona. Nenhum dos dois é ruim, são coisas diferentes.”
Essa representação da sociedade argentina, portanto, ultrapassa o campo e sua carreira como jogador. “Diego vai além do futebol. Sempre foi uma pessoa que fez a classe média e baixa se sentirem representadas por ele. Pelo que contava, pelo que dizia, porque sempre foi uma pessoa que defendeu os que menos têm”, afirma Gastón Germone, guia do museu em que foi transformada a primeira casa de Diego e sua família, no bairro Paternal, em Buenos Aires. “Diego conseguia dar alegria, um sorriso no fim de semana quando jogava.”
A primeira casa própria de Maradona foi doada pelo clube de estreia do jogador, Atlético Argentinos Juniors, que fica a poucas quadras da casa. Germone conta que, no último dia 30 de outubro, dia do aniversário de Maradona, o museu foi visitado por muitas pessoas, incluindo alguns irmãos de Diego e viajantes de províncias distantes.
“São datas muito emotivas, tanto a de seu nascimento quanto de sua morte”, conta. “A Argentina tem o Diego presente, mais do que nunca. Acredito que ele está do céu olhando pra nós e ajudando com o que seja para que possamos levantar a taça.”
A demonstração dos admiradores do ídolo aconteceu também em vida. Em 1998, Maradona recebeu com humor o que um grupo de fãs agrupados chamaria de Igreja Maradoniana. A ideia ironiza em forma de templo itinerante o lema de que, na Argentina, futebol é religião. E Diego é Deus. "Então, deve existir uma igreja maradoniana", explica um dos fundadores, o jornalista esportivo Alejandro Verón. O “culto” consiste em reunir fãs e objetos referentes ao ídolo. Verón lembra, por exemplo, de um fanático que fez o “golário”: no lugar das 50 bolinhas do rosário, o golário tem 35, que são os gols que Diego fez em Copas do Mundo.
"Nas entrevistas, ele sempre lembrava da gente", conta Verón, deixando escapar lágrimas com a lembrança.
O apelido de "Deus" – ou "D10S", um jogo entre a palavra e o número da camisa –, cunhado para designar o jogador, surgiu no mesmo jogo contra a Inglaterra na Copa de 86, com o episódio conhecido como "la mano de Dios". Em uma época livre do polêmico VAR, um dos gols dessa partida foi antecedido por uma cabeçada e um leve toque do punho de Diego na bola. Com sagacidade, o jogador respondeu às perguntas da imprensa sobre o que parecia ter ocorrido naquele gol: "foi um pouco com a cabeça e um pouco com a mão de Deus". Nascia o herói nacional.
Nesse mesmo ano, a Argentina foi a vencedora da Copa do Mundo. Desde então, o país espera repetir o feito.
"Não sei se temos combustível suficiente, mas temos um time que certamente vai dar trabalho aos adversários”, opina Verón, temeroso pelas lesões dos jogadores da seleção deste ano. “Costumamos dizer que a etapa pós-Pelé custou horrores ao Brasil para posicionar-se na Copa, um intervalo de 70 a 94. Dizemos que era uma eternidade de 24 anos. Nós, desde 86, não terminamos de velar futebolisticamente a Diego.”
Verón diz que os argentinos merecem superar essa longa etapa de taças não levantadas. O país atravessa um longo e doloroso processo de empobrecimento da população, após o mandato de um governo neoliberal (Mauricio Macri) que garantiu a riqueza e a impunidade a poucos. O tipo de coisa que Maradona condenava.
Para Pablo Alabarces, se efetivamente a Argentina sair campeã na primeira Copa sem Diego entre nós, é inevitável: Maradona será santificado. Um santo pagão, laico, santo desses que escutam e cumprem os desejos, ouvem os pedidos e produzem milagres. “Se essa associação do Maradona cumprindo o desejo, como um fantasma, se concretiza, Maradona vira um santo popular”, diz, soltando uma risada. “Não há dúvidas sobre isso.”
Edição: Arturo Hartmann