A despeito de dados alarmantes, há uma deficiência estrutural no atendimento a casos de aborto legal
Por Claudia Maria Dadico*
Recentemente dois casos de crianças grávidas que tiveram obstáculos para exercer seu direito constitucional e humano ao aborto legal chamaram a atenção da opinião pública.
Em 2020, foi amplamente noticiado o caso da menina de 10 anos, grávida de um familiar, que teve que recorrer à Justiça para fazer valer seu direito ao aborto legal, uma vez que o hospital mais próximo de sua residência se recusou a realizar o procedimento, sob alegação de ausência de condições técnicas, invocando uma normativa do Ministério da Saúde de 2012. O caso, chocante por suas próprias circunstâncias, tornou-se ainda mais dramático quando a própria Ministra da Família e dos Direitos Humanos atuou para obstaculizar o atendimento. Em razão da intensa mobilização de ativistas, a menina conseguiu, finalmente realizar seu direito. Para isso, todavia, foi obrigada a viajar para Recife, onde finalmente recebeu o atendimento a que fazia jus.
Em 2022, foi a vez da menina catarinense, da cidade de Tijucas, que foi obrigada a recorrer ao Judiciário para superar a negativa do serviço de saúde para realização do aborto legal. Dessa vez, entretanto, o caso ganhou ainda maior dramaticidade em razão do tratamento recebido pelas autoridades do sistema de justiça, qualificado por muitos como exemplo de violência institucional, não apenas em razão da coleta de depoimento ao arrepio das normas de depoimentos especiais, não apenas pela revitimização a que foi submetida, mas pelas desinformações e constrangimentos sofridos em audiência para coagi-la a dar à luz. Outras violências se seguiram, quando a menina foi retirada da guarda da mãe e remetida a um abrigo. Foram vários dias e vários os labirintos de decisões judiciais que a menina e sua mãe tiveram que percorrer para que seu direito ao aborto legal e seguro fosse restabelecido.
Esses dois casos, entretanto, são apenas alguns exemplos da realidade de milhares e milhares de crianças e adolescentes submetidas ao flagelo da gestação resultante da sempre presente violência, notadamente nos casos de adolescentes com menos de 14 anos de idade, marco normativo que estabelece a violência presumida que caracteriza o estupro de vulnerável (art. 217-A do CP).
Os dados são verdadeiramente estarrecedores. O Anuário da Violência de 2022, Fórum Brasileiro de Segurança Pública, compilado a partir de dados do ano de 2021, demonstra que “no Brasil, 9 em cada 10 vítimas de estupro tinham no máximo 29 anos quando sofreram a violência sexual, mas com forte concentração na infância. Se considerarmos as crianças e adolescentes entre 0 e 13 anos, que automaticamente são enquadradas como vulneráveis, temos 61,3% de todas as vítimas, com forte concentração na faixa de 5 a 9 anos, que representa 19,1% das vítimas, e de 10 a 13 anos, que reúne 31,7% dos registros”.
A violência que caracteriza juridicamente o crime de estupro já é uma das causas que autorizam o acesso ao direito ao aborto legal, de acordo com o artigo 128, II do CP. No caso das crianças e adolescentes, o direito também decorre do fato de que as gestações nessa faixa etária também se caracterizam como risco de vida.
Dados do Ministério da Saúde apontam que a cada 30 minutos uma menina de 10 a 14 anos se torna mãe no Brasil.
Nesse aspecto é preciso destacar a posição da Federação Brasileira das Associações de Ginecologia e Obstetrícia (FEBRASGO) que, em sua “Nota informativa aos tocoginecologistas brasileiros sobre o aborto legal na gestação decorrente de estupro de vulnerável” de 22.6.2022, que “as taxas de mortalidade materna entre as gestantes menores do que 14 anos chegam a ser 5 vezes maiores do que entre gestantes entre 20-24 anos”. Diante dos lamentáveis números de estupro de vulneráveis e de procedimentos de abortamento realizados por meninas, qualquer empecilho gerado para a realização do procedimento não apenas será uma violação ao direito fundamental à saúde, estabelecido nos arts. 6.º e 196 da CF, como também violará o dever de assegurar, com absoluta prioridade, o direito à vida e à saúde, nos termos do art. 227, caput, da CF.
A despeito dos dados alarmantes, há ainda uma deficiência estrutural no atendimento aos casos de aborto legal. Os óbices vão desde a falta de informação, falta de serviços estruturados e capilarizados, distância que muitas vezes a vítima é obrigada a percorrer, sem que se tenha condições financeiras para suportar tais custos e, mais recentemente, uma política institucionalmente orientada para alijar as vítimas de crimes sexuais do exercício de seus direitos.
Nesse sentido, é exemplar o documento “Atenção Técnica para Prevenção, Avaliação e Conduta nos Casos de Abortamento”. O referido documento incide em erros grosseiros e desinformação, sendo um exemplo notável de como as autoridades sanitárias do Ministério orientam-se para obstar o acesso ao direito ao aborto legal. Um exemplo de desinformação contida no referido documento consiste na afirmação de que há um marco de idade gestacional em que é possível realizar o aborto legal que seria de 22 semanas. Tal informação é falsa. Não há respaldo convencional, constitucional ou mesmo legal para tal assertiva.
A cartilha também padece de uma contradição insanável. Primeiro: ela afirma que todo aborto é crime, o que é manifestamente incorreto. A mesma cartilha, no entanto, afirma que as hipóteses do art. 128 do Código Penal que são: risco de vida à gestante, gravidez resultante de estupro e gravidez de fetos anencefálicos são hipóteses de excludentes de ilicitude.
Ora, no direito – e isso se aprende nas primeiras lições de direito penal – um fato é tido como crime se ele é típico, ilícito e culpável. Uma excludente de ilicitude exclui o crime. Quer dizer, se o fato não é ilícito, ele não é crime! Uma confusão proposital que busca criminalizar o exercício legítimo de direitos. A cartilha ainda contraria uma série de garantias decorrentes dos Tratados Internacionais de Direitos Humanos e que devem vincular a atividade de todos aqueles que exercem funções públicas.
O direito ao aborto legal para meninas vítimas de violência é um caso emblemático de como um direito pode ser erodido de várias formas diferentes: por inexistência de oferta de serviços, por falta de informação adequada, por óbices financeiros, por deliberada desinformação produzida por agências governamentais e, porque não dizer, pelos efeitos de uma cultura patriarcal e discriminatória que deprecia e objetifica o corpo feminino jovem, negando-lhe seu direito à saúde, à vida, à integridade física e mental e à liberdade sexual.
O caráter sistêmico dessas violações aponta para o que a doutrina constitucional tem denominado de “litígio estrutural”.
Com a finalidade de dar um basta a essa situação foi protocolada no Supremo Tribunal Federal a ADPF 989, de Relatoria do Ministro Edson Fachin, em que se postula o reconhecimento do Estado de Coisas Inconstitucional, no que diz respeito ao acesso ao aborto legal.
Não é a primeira vez que o Supremo Tribunal Federal é provocado a se manifestar sobre um alegado “estado de coisas inconstitucional”.
Assim ocorreu no caso do reconhecimento da situação caótica do sistema carcerário brasileiro (ADPF 347/DF), no caso das violações de direitos humanos reconhecidas nas operações policiais nas comunidades, a chamada “ADPF das Favelas” (ADPF 365) e no caso das políticas ambientais, em que também foi evocada a técnica decisória do Estado de Coisas Inconstitucional (ADPF 760).
O pioneirismo no reconhecimento desta categoria é da Corte Constitucional da Colômbia. Assim, para que determinada situação seja reconhecida como um “estado de coisas inconstitucional” seriam necessários três requisitos: uma situação de violação generalizada de direitos fundamentais; a inércia ou incapacidade reiterada e persistente das autoridades públicas competentes em modificar a situação; a superação dessas violações exigir a atuação não de apenas um órgão, mas de uma pluralidade de autoridades (nesse sentido, entre outras, a Sentencia T-25, de 22 de janeiro de 2004).
Não há dúvidas de que se trata de um novo paradigma no processo constitucional brasileiro e a atuação do Supremo Tribunal Federal tem enorme potencial de superação de omissões e inoperâncias históricas na concepção e implementação de políticas públicas voltadas aos direitos humanos.
A reiterada e sistemática violação dos direitos fundamentais das crianças e adolescentes no acesso ao aborto legal, em todo território nacional, tem toda pertinência no trato como um Estado de Coisas Inconstitucional.
Mais uma vez o Supremo Tribunal Federal tem nas mãos uma oportunidade histórica de deixar uma marcar memorável em sua trajetória de defesa dos direitos humanos da população brasileira. Essa, sem dúvida, é uma das maiores oportunidades que o Estado brasileiro tem para reparar as gravíssimas injustiças impostas às meninas e adolescentes brasileiras, obstadas de exercer direitos amplamente reconhecidos, mas sistematicamente negados.
*Cláudia Maria Dadico é Doutora em Ciências Criminais pela PUC-RS, juíza federal, integrante da Associação Brasileira de Juristas pela Democracia (ABJD) e da Associação Juízes para a Democracia (AJD).
**A coluna Avesso do Direito mostra uma visão mais ampla do Direito e suas relações com a vida, a democracia e a pluralidade. É escrita pelos juízes federais José Carlos Garcia e Cláudia Maria Dadico, ambos membros da Associação Brasileira de Juristas pela Democracia (ABJD). Leia outros textos.
***Este é um artigo de opinião. A visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato.
Edição: Glauco Faria