A assistente social Marcia Lopes ainda comemorava a vitória eleitoral de Lula, quando recebeu uma ligação inesperada da presidenta do Partido dos Trabalhadores (PT), Gleisi Hoffmann. Era uma convocação, de petista para petista, para que Marcia integrasse a equipe de transição de governo na área de Assistência Social, chefiada por Simone Tebet (MDB). “Não tinha muito o direito de responder não”, brincou.
Márcia Lopes é paranaense de Londrina, professora universitária aposentada e trabalhou por cinco anos no extinto ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome, antes de assumir como ministra da pasta em 2010, onde ficou por um ano. Coordenou e ajudou a implementar o programa Fome Zero e o Sistema Único de Assistência Social (SUAS). Após sair do governo, manteve-se atuante na Frente Nacional em Defesa do SUAS, no Instituto Lula e na Fundação Perseu Abramo.
“Vamos obviamente seguir aquilo que o presidente Lula vem colocando como prioridade na área social: o combate à fome. Como a gente vai devolver imediatamente à população o acesso aos alimentos?”, afirma.
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Por conhecer como poucos a estrutura de assistência social implementada no governo Lula, o trabalho de Marcia a partir desta segunda-feira (14) será fazer um diagnóstico do “desmonte geral” - como ela mesmo define - sofrido pelo setor após o golpe contra a presidente Dilma Rousseff (PT). E apontar como reconstruir as políticas públicas interrompidas pelo impeachment de Dilma e que serviram de modelo de inclusão social em países em desenvolvimento.
“Nenhum CRAS foi implantado no governo Bolsonaro. Nenhum CREAS, nenhum centro de população de rua. O Programa de Erradicação do Trabalho Infantil foi também suspenso. Então o que nós tivemos de fato foi um desmonte também da política de assistência social”, diz a assistente social.
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Segundo ela, a articulação política conduzida pelo novo governo em Brasília deve garantir orçamento para o combate à fome, embora haja resistências por parte do “mercado”. E isso só será possível, conforme a ex-ministra, com a reconstrução do pacto federativo, rompido a partir de 2016, quando a realidade das cidades deixou de ser levada em consideração na implementação das políticas.
Confira a entrevista completa:
Brasil de Fato: Como o trabalho de transição pode contribuir com as metas sociais estabelecidas pelo presidente Lula?
Márcia Lopes: O objetivo da transição é justamente a gente conhecer de perto a realidade do ponto de vista orçamentário, financeiro, da estrutura física, da estrutura de pessoal de cada área. Como [o grupo em que estou] foi colocado Assistência Social, mas também no desenvolvimento social, eu tenho impressão que nós vamos entrar no ministério da Cidadania. Só que esse ministério também abarcou a estrutura do INSS. Havendo a recriação do ministério da Previdência, ela deve voltar para a previdência. O ministério da Cidadania abarcou também cultura e esportes, que eu também entendo, como anunciado, que estarão nos seus lugares [ministérios] próprios. Houve a extinção de uma série de ministérios e de estruturas que agora provavelmente serão recuperadas.
A prioridade interna do governo é ganhar domínio do setor para a gente ir dominando todas as informações dessas áreas e fazer um plano estratégico, para, a partir de primeiro de janeiro, começar a tomar as providências cabíveis para fazer a máquina funcionar.
Vamos obviamente seguir aquilo que o presidente Lula vem colocando como prioridade na área social: o combate à fome. Como a gente vai devolver imediatamente à população o acesso aos alimentos? E para ter acesso aos alimentos, você precisa ter recursos, ter renda para comprar alimento, você precisa encontrar o alimento mais barato, ter a disponibilidade desses alimentos. Nós fizemos isso com a integração de vários programas naquilo que foi o Fome Zero, que eu coordenei com 13 ministérios.
E é claro que o governo terá uma estrutura. Ou é voltar ao Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à fome ou não. Não sei ainda como é que vai ficar. Vamos estudar agora na transição, mas sabemos que terá uma estrutura e terá a prioridade, como sempre o presidente Lula fez. Ele sempre nos falava: nunca vai faltar dinheiro para incluir as pessoas mais pobres no orçamento. Ele sempre se indignou com o sofrimento humano. O Brasil vai sair de novo, do mapa da fome. As famílias e os trabalhadores voltarão a ter esperança e a participar de um processo de desenvolvimento econômico e social no país. E eu estou muito feliz. Confio muito no presidente Lula, na sua equipe. A gente vai enfrentar esse desmonte todo. E agora não mais falando para trás, mas falando do futuro.
Precisamos também melhorar a alimentação escolar. Tem uma crítica de que as crianças agora estão comendo biscoito e suco. Para isso tem o Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE), que compra da agricultura familiar no mínimo 30% para para alocar nas escolas e ter uma comida de qualidade. O Pronaf, que é acesso à crédito, a retomada da construção das cisternas, das cozinhas e restaurantes. É um conjunto de ações que vão rapidamente fazer chegar esse alimento à população.
E o Brasil é muito grande e tem muita diversidade cultural. Quando a gente conversa com as comunidades indígenas, há uma expectativa em relação aos alimentos. Eles não querem cesta básica que venha do mercado, aquela cesta tradicional. Há especificidades para comunidades quilombolas, comunidades de uma região metropolitana de uma capital ou uma comunidade na área rural… Respeitar essa diversidade é muito importante.
A nossa prioridade é combater a fome e assegurar a estabilidade do programa Bolsa Família. Não só entregar o cartão [do Bolsa Família] em si, mas identificar onde essas famílias estão, como elas vivem, que tipo de desproteção elas têm. Como fazer a relação com saúde e educação, para proteger as crianças em termos de vacinação, proteger as as gestantes e por crianças na escola. Não tenho dúvida de que essa vai ser a prioridade zero.
E, junto com isso, restabelecer a própria relação do pacto federativo, que também foi rompida. Então é trazer os municípios e os estados para o centro do diálogo, para entender e construir com eles. É uma pauta de prioridades durante os primeiros meses.
Qual é a possibilidade de você assumir um ministério ou uma secretaria no governo Lula?
Eu não me via indo nem para a transição. E deixei claro que até dezembro eu me disponho a isso. Fiz esse pacto e tive todo o apoio da minha família em Londrina. O presidente Lula já falou para não criarmos nenhuma expectativa, porque quem está na transição, não significa que estará no governo. Então eu não crio essa expectativa. O meu compromisso é até dezembro. Independente de eu estar no governo, a gente tem uma Frente Nacional em Defesa do SUAS. A gente participa do Consórcio Nordeste. Tem muitas frentes que a gente vai continuar apoiando.
O chamado “mercado” parece não gostar que Lula considere a fome uma prioridade zero, acima da chamada “responsabilidade fiscal”. Como garantir os recursos para tirar o Brasil do Mapa da Fome?
Antes mesmo do presidente Lula pisar em Brasília, a equipe de transição iniciou uma articulação política com os partidos, incluindo os que não são da base de apoio do futuro governo. Agora é fazer uma articulação, tanto política com os parlamentares que têm o poder de decisão, mas também com as entidades, com os municípios, com a Federação Nacional de prefeitos, com os governadores.
O presidente Lula tem muito essa capacidade de dialogar com o Brasil. De modo geral, as pessoas estão sabendo o que está acontecendo porque estão sentindo na pele. E estão muito abertas a apoiar e a participar. Mesmo outros setores, como os empresários, porque eles sabem o que acontecia antes [do golpe contra a ex-presidenta Dilma]. Quando a população tinha renda, a população comprava mais comida.
Em alguns estados os prefeitos diziam que 70% da arrecadação vinha do Bolsa Família. Foi isso que fez poder abrir farmácia, mercado, ter ônibus de um município para o outro, porque as pessoas vão procurar aquilo que elas precisam comprar. Não há dúvida de que essa foi uma estratégia do partido e foi uma estratégia trocada, conhecida de outros países da América Latina.
Qual é o tamanho do estrago deixado pelos governo Temer e Bolsonaro na área social? E como reverter o desmonte?
Quando se constrói um sistema público, a exemplo do SUS, você tem uma pactuação nacional. Os três entes federados devem participar do planejamento das escolhas de programas e serviços, daquilo que atende melhor a população. E nós construímos o Sistema Único de Assistência Social assim. Nós fizemos uma grande pesquisa junto com o IBGE, olhando cada município brasileiro e o que ele tinha em termos de serviços na assistência social.
E o que aconteceu quando houve o golpe? Não era uma ideia republicana que eles tinham. O estado tem que funcionar, independente do partido que vai estar lá, tem que estruturar e oferecer serviços públicos adequados, em qualidade e quantidade para a população. Nas áreas de saúde e educação também teve desmonte, mas já havia uma estrutura mais arraigada e mais convencional, que a própria população vigia. Na área da assistência social isso não ocorria, pois era um serviço muito novo.
Nós fizemos uma tipificação dos serviços sócio assistenciais, porque cada um chamava de um jeito e fazia de um jeito. Aqui no Sul era um tipo de serviço e outro no Nordeste. Então nós criamos a tipificação e financiamos o serviço em função do tipo de trabalho. Se era um centro de convivência de idoso, tinha um custo. Se era um centro de permanência do idoso, tinha um outro tipo de financiamento. E com isso nós fomos organizando a rede no Brasil
Quando o Temer implanta o programa Criança Feliz [de assistência médica e psicológica para crianças de até 3 anos], ele não está na tipificação, porque não é assistência social, é um serviço de saúde. Mas ele [Temer] implanta na assistência social e põe o maior recurso da assistência social nesse programa, porque ele quer carimbar o nome do programa, vinculando-o ao seu governo.
E aí começou a retirada dos recursos dos orçamentos e a interrupção da capacitação e formação dos trabalhadores. Nenhum CRAS foi implantado no governo Bolsonaro. Nenhum Creas, nem um centro de população de rua. O Programa de Erradicação do Trabalho Infantil foi também suspenso. Então o que nós tivemos de fato foi um desmonte também da política de assistência social. E não só do ponto de vista do financiamento, mas esvaziou a função de coordenação da política. De coordenação, de supervisão técnica, de apoio à formação e à capacitação dos novos quadros. E isso veio até agora. A ponto de haver uma interrupção nessa articulação com os estados e municípios. Houve uma ruptura do pacto federativo.
Com esse desmonte, nós chegamos ao que deveria ser em torno de R$ 6 bilhões para assegurar os serviços para todo o Brasil. Depois caiu para R$ 1,1 bi, e agora um corte de 96% para o ano que vem. Daria R$ 128 milhões, ou seja, extingue a assistência social no que diz respeito ao repasse para os municípios. Então é claro que nós vamos imediatamente retomar isso.
E mesmo para o Benefício de Prestação Continuada e para o Auxílio Brasil, que volta a ser o Bolsa Família, porque a previsão orçamentária para o ano que vem é que seja de R$ 400 e não de R$ 600. Não deixaram recursos para isso. O presidente Lula e toda a comissão de transição está desde já conversando na Câmara Federal e no Senado, para que as bancadas se disponham a reconstituir o orçamento necessário à transferência de renda. Essa vai ser a maior prioridade, fazer chegar a renda para que os municípios possam comprar os seus alimentos.
E quando chegar a renda, embora ela chegue para as famílias, essa renda muda a economia de todo o município. Ela dinamiza a economia. Se você tem um acordo com o prefeito de que ele vai valorizar a agricultura familiar, de que ele vai estimular a produção agrícola e comprar essa produção, em pouquíssimos meses isso muda a realidade do município.
Edição: Vivian Virissimo