O número registrado é 161% maior em comparação com o mesmo período de 2021
Por Rafael Oliveira*
Mais de 5,6 mil famílias camponesas foram vítimas de conflitos por contaminação por agrotóxicos no primeiro semestre de 2022 em todo o Brasil. O número registrado é 161% maior em comparação com o mesmo período de 2021, revelam dados parciais divulgados pela Comissão Pastoral da Terra (CPT).
"As famílias estão perdendo seu meio de produção por conta dos agrotóxicos, inclusive as que produzem agroecologicamente. As monoculturas estão acabando com essa prática sustentável da agricultura familiar", denuncia a coordenadora nacional da CPT, Isolete Wichinieski.
A pastoral começou, em 2019, a registrar os casos de contaminação por agrotóxicos em seu Caderno de Conflitos no Campo - uma publicação anual sobre conflitos em todo o país elaborada pela CPT desde 1985. Esse tipo de violência, segundo a CPT, "vem atingindo progressivamente as famílias desde então, chegando ao registro, nos primeiros seis meses de 2022, de um número 376,5% maior que o mesmo período de 2019, quando 1183 famílias foram atingidas".
As 90 famílias da comunidade quilombola Guerreiro, localizada no município maranhense de Parnarama, a cerca de 500 km da capital São Luís, sentem no dia a dia os efeitos do uso indiscriminado de agrotóxico pelos latifúndios de soja e milho vizinhos. Desde 2009, quando a Suzano Papel e Celulose mantinha plantios de eucalipto próximos ao território da comunidade, o grupo sofre com a aplicação de agrotóxicos.
A situação se intensificou há cerca de três anos, quando a empresa vendeu as terras para plantadores de soja e milho. "A gente já sentia os impactos do veneno quando a Suzano jogava por trator nos eucaliptos. Agora, com essas lavouras de soja e milho, os fazendeiros aplicam [o agrotóxico] por avião e ele se espalha pelo vento e chega nas nossas plantações, nas nossas águas", relata um morador da comunidade que, por motivos de segurança, não será identificado nesta reportagem.
Por conta do agrotóxico lançado na soja e no milho, os alimentos produzidos pelas famílias da comunidade a partir de seus saberes ancestrais já não têm mais a mesma qualidade. Segundo o morador, o feijão, o arroz, o caju, o tomate e o mamão - além de outras variedades - não têm se desenvolvido como de costume. "Todas elas deixaram de produzir igual anteriormente, a gente vê essa diferença. Se antes nós tínhamos alimento suficiente para comer durante um ano, hoje nós não temos mais. O que a gente produzia antes e passava o ano comendo um alimento saudável, nós não vamos mais ter esse alimento, nós já temos que comprar na cidade", denuncia.
Além de contaminar as águas e os alimentos da comunidade, a pulverização aérea de agrotóxicos também atinge, literalmente, os corpos das famílias do Guerreiro, conforme relata o morador da comunidade. "Quando eles [latifundiários] estão em plena produção, muita gente adoece na comunidade. No mesmo momento que o avião sobrevoa aplicando o veneno, muitas pessoas daqui sentem uma coceira muito forte, uma dor de cabeça intensa que é preciso até ir ao hospital".
Em setembro deste ano, um estudo da pesquisadora Sônia Hess, divulgado pela Agência Pública e Repórter Brasil, constatou que 45% dos 1,8 mil produtos liberados pelo governo do presidente Jair Bolsonaro, entre janeiro de 2019 e junho de 2022, são de agrotóxicos proibidos na União Européia (UE) - em sua maioria, utilizados em plantações de soja, milho, cana-de-açúcar e algodão.
"O glufosinato (sal de amônio) é o ingrediente ativo presente na maior quantidade de produtos registrados nos últimos anos. (...) Em 2009, foi proibido na União Europeia por estar associado à desregulação endócrina, alterações genéticas e danos ao fígado. Em 2019, o Brasil registrou 26 produtos com glufosinato, em 2020 foram mais 21 aprovados e em 2021 foram 12, totalizando 59 produtos", aponta a reportagem em referência ao estudo de Hess. O ingrediente ativo é o elemento principal do agrotóxico e, a partir dele, é fabricado o produto final. Dentre outros ingredientes ativos citados no estudo, estão o herbicida hexazinona e a atrazina - ambos com comercialização proibida na UE.
Aumento nos conflitos por terra
De acordo com os dados parciais divulgados pela CPT, entre janeiro e junho deste ano, foram registradas 759 ocorrências de conflitos no campo no Brasil, envolvendo um total de 113.654 famílias - os registros são classificados em disputa por terra e água, resgatados de trabalho escravo, assassinatos, contaminação por agrotóxicos entre outros. Deste total de ocorrências, 601 estão relacionadas a conflitos por terra, um aumento de aproximadamente 5,4% em comparação ao mesmo período de 2021.
Outro dado destacado se refere ao número de assassinatos no campo em 2022. "Até agora, a CPT registrou 33 assassinatos, sendo 25 somente no primeiro semestre. Cinco mulheres foram assassinadas e esse é o maior número registrado desde 2016", informa a pastoral.
Para Isolete Wichinieski, coordenadora da CPT, fortalecer a mobilização social e os espaços de diálogo e participação nas próprias comunidades é estratégia fundamental para resistir à escalada de violência. "São as comunidades que vão garantir a mobilização necessária para cobrar suas demandas. Nunca conquistamos nada de graça, sempre foi com articulação, participação das comunidades. Lula tem uma proposta diferenciada para os povos do campo, mas ainda assim vai exigir mobilização", pontua Wichinieski.
*Rafael Oliveira é comunicador popular da Articulação Nacional de Agroecologia.
**Acompanhe a coluna Agroecologia e Democracia. A Articulação Nacional de Agroecologia (ANA) é um espaço de diálogo e convergência entre movimentos, redes e organizações da sociedade civil brasileira engajadas em iniciativas de promoção da agroecologia, de fortalecimento da produção familiar e de construção de alternativas sustentáveis de sistemas alimentares. Leia outros artigos.
***Este é um artigo de opinião. A visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato.
Edição: Vivian Virissimo