Coluna

Programa de apoio à alimentação escolar é ignorado no governo Bolsonaro

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O Pnae é uma das mais importantes políticas públicas existentes que garantem às crianças, jovens e adultos estudantes o direito à alimentação e à nutrição adequadas - Foto: Agência Brasil
Programa Nacional de Alimentação Escolar (Pnae) é determinante no combate à fome

Rafael Oliveira*

 

Aos 51 anos, a agricultora Maria do Carmo Correia Martins conta com orgulho que se formou no ensino técnico em agroecologia na Escola Família Agrícola de Porto Nacional (EFAPN), cidade a 60km de Palmas, no Tocantins. "Eu sou da primeira turma formada no técnico de agroecologia da EFA de Porto Nacional, entre 2013 e 2016. Logo depois, minha filha fez o curso de agropecuária, e se formou em 2020", recorda a camponesa.

Militante do Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB), Maria do Carmo carrega boas lembranças da época em que estudou na instituição, período que ela considera uma das grandes conquistas de sua vida. "O aprendizado é diferenciado, era teoria e prática, e sempre com conteúdo voltado para o nosso contexto", afirma.

Segundo a agricultora, a turma ficava até três meses estudando e morando nas dependências da escola e depois passava uma temporada em casa, no método de ensino chamado pedagogia da alternância. "No período que ficávamos alojados na EFA, nós tínhamos uma estrutura boa, inclusive a alimentação. Todo mundo recebia até seis refeições ao dia, com frango caipira, carne de porco, suco natural, alface, couve, frutas e um tanto mais", afirma.


Formada em agroecologia pela EFA Porto Nacional, Maria do Carmo hoje produz o próprio alimento sem uso de agrotóxico / Divulgação/MAB

Os alimentos a que Maria do Carmo se refere eram adquiridos da agricultura familiar, por meio do Programa Nacional de Alimentação Escolar (Pnae), uma histórica política pública federal que financia as merendas escolares das redes públicas de ensino municipais, estaduais e federal - abrangendo os diferentes níveis: educação infantil, ensino fundamental, ensino médio e educação de jovens e adultos. Uma das exigências do programa, fruto da mobilização social, é de que no mínimo 30% do valor repassado pelo governo federal, no âmbito do Pnae, seja utilizado para a compra de alimentos diretamente da agricultura familiar.

A fartura de alimentos descrita pela agricultora, no entanto, já não é mais vista com frequência nas instituições de ensino país afora. Isso porque, desde 2017, a verba destinada ao Pnae não é reajustada pelo governo federal. Atualmente, a depender da categoria da unidade de ensino, o programa destina por aluno ao dia, entre R$ 0,32, no caso do ensino médio, e R$ 1,07, no caso das creches.

Em junho deste ano, o Congresso Nacional aprovou na Lei de Diretrizes Orçamentárias (LDO) para 2023 uma proposta que previa o reajuste de 34% para recompor as perdas no Pnae ocasionadas pela inflação dos alimentos que, desde o início da pandemia, aumentou 43%. No entanto, alegando que a pauta é contrária ao interesse público, o presidente Jair Bolsonaro (PL) vetou a proposta no dia 10 de agosto. Caso tivesse sido aprovado, o recurso repassado pularia de R$ 3,9 bilhões para R$ 5,5 bilhões anuais - cerca de R$ 1,5 bilhão a mais do que o valor atual.

Na avaliação da assessora da FIAN Brasil e coordenadora do Observatório da Alimentação Escolar (ÓAÊ), Mariana Santarelli, o Pnae é uma das mais importantes políticas públicas existentes que garantem às crianças, jovens e adultos estudantes o direito à alimentação e à nutrição adequadas. "A tendência que temos visto é de um desmonte completo das políticas públicas, como o PAA [Programa de Aquisição de Alimentos da Agricultura Familiar] e as cisternas, que vêm tendo seu orçamento reduzido. O Pnae, bem ou mal, se mantém de pé, mas o problema é que não há reajuste desde 2017. A enorme inflação no valor dos alimentos significa de fato uma perda na capacidade de compra, e isso influencia na qualidade e quantidade de alimentos adquiridos pelas instituições de ensino no Brasil", pontua.

De acordo com Santarelli, a perda do valor per capita tende a impactar, sobretudo, os municípios com menor arrecadação, onde normalmente há maior concentração de pobreza e necessidade da efetivação do programa. "A política do Pnae pressupõe que seja um recurso complementar, ou seja, os municípios também têm que colocar recursos próprios. Mas a realidade é que as prefeituras e secretarias contam praticamente só com o recurso do governo federal para garantir a merenda nas escolas", contrapõe.


Mulheres camponesas integrantes do MAB montam cestas de alimentos para abastecer escolas da região de Palmas e Porto Nacional, no Tocantins / Divulgação/MAB

O retorno à fome

Após quase 10 anos, o Brasil voltou a constar no Mapa da Fome da Organização das Nações Unidas (ONU) e contabiliza cerca de 33 milhões de pessoas passando fome todos os dias - conforme pesquisa divulgada pela Rede Penssan (Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional). Segundo o estudo, em domicílios com crianças menores de 10 anos, a insegurança alimentar grave - o que corresponde à fome -  subiu de 9,4% em 2020 para 18,1% em 2022. 

Nutricionista do Instituto Federal de São Paulo (IFSP), no campus de Guarulhos (SP), e mestranda em Nutrição em Saúde Pública, Christiane Paiva convive com a dificuldade em montar cardápios balanceados diante da escassez de recursos para compra de produtos saudáveis e variados. "A gente não atinge as necessidades nutricionais, os alunos de baixa renda ficam com fome, eles não têm o ideal para passar aquele tempo na escola. E quem está com fome não estuda, quem está com fome não aprende", relata. 

Paiva conduz uma pesquisa na qual avalia a gestão do Pnae nas diversas unidades do IFSP. Segundo a nutricionista, como o valor do Pnae não é suficiente, muitas unidades não oferecem todas as refeições que deveriam e, quando oferecem, há predominância de uma alimentação de má qualidade, que não traz benefícios para a saúde. "A gente não tem uma verba específica para alimentação além do Pnae. Meu estudo mostra que 70% dos campi têm cardápios com alta oferta de alimentos doces e de baixo valor nutricional. Muitos oferecem alimentação apenas de produtos ultraprocessados, que é a merenda seca que chamamos", afirma Paiva

De acordo com a nutricionista, a baixa qualidade dos alimentos é um risco à saúde dos alunos e alunas. "Esses são produtos com alto teor de açúcar, sódio e gordura saturada. Eu falo que estamos criando diabéticos, isso é muito preocupante e no futuro vai ser um problema de saúde pública", enfatiza a pesquisadora.

O aumento do preço dos alimentos e a defasagem do recurso repassado no âmbito do Pnae também afetou negativamente a alimentação servida na Escola Família Agrícola de Porto Nacional (EFAPN), instituição localizada no Tocantins que possui cerca de 240 estudantes do sexto ano do ensino fundamental à terceira série do ensino técnico. Segundo Ozéias Neres Cerqueira, gestor da escola que há 28 anos profissionaliza homens e mulheres do campo, atualmente está inviável garantir comida de qualidade para alunas e alunos. "Nós ofertamos cinco refeições todos os dias. Com esse dinheiro que recebemos, não conseguimos mais comprar os produtos da agricultura familiar. Os agricultores e agricultoras, com razão, não se sentem mais atraídos, porque o valor que oferecemos é muito baixo", pontua.

A problemática enfrentada em relação à mudança nos hábitos alimentares do dia a dia da EFAPN pode interferir também no modo de vida camponês, segundo Cerqueira. "A juventude aos poucos pode acabar perdendo a sua identidade camponesa. A alimentação do público camponês tem critérios específicos de cultura, de identidade. Nós estamos estudando e trabalhando com os estudantes sistemas de produção tradicionais, ensinamos que o frango caipira é mais saudável, mas por dificuldades financeiras temos que ofertar o frango de granja nas refeições. Se torna a situação contraditória, difícil de lidar", reflete o gestor.

Pode dar certo

Quando trabalhada da forma correta, com participação da sociedade e com investimento baseado no contexto local, uma política pública como o Pnae é capaz de transformar vidas. É o caso das Margaridas, um grupo de mulheres que há cerca de 10 anos beneficia produtos da agricultura familiar e vende para o Pnae no município de Remígio, na Paraíba. As mulheres do coletivo vivem no Assentamento Oziel Pereira, onde está construída a cozinha das Margaridas. Lá elas produzem bolos de vários sabores: macaxeira, milho, batata doce, jerimum, e também preparam tapioca e pamonha no período junino.


No período de São João, as Margaridas transformam o milho comprado da agricultura familiar em bolo, mungunzá, canjica; alimento que tem como destino as instituições de ensino de Remígio (PB) / Divulgação/Margaridas

Segundo Anilda Batista Pereira dos Santos, agricultora e coordenadora das Margaridas, o Pnae foi o pontapé inicial para o fortalecimento do grupo. "Participar do programa nos ajudou a conseguir a nossa estrutura. Nos primeiros anos, a gente investiu o recurso do Pnae no nosso espaço de trabalho. A gente tirava o mínimo pra gente e investia na estrutura, e assim fomos melhorando", recorda a liderança. 

O retorno financeiro conquistado a partir do próprio trabalho possibilitou às mulheres do grupo independência da renda dos maridos e de programas assistenciais do governo, relata Santos. "No início, as mulheres só tinham o Bolsa Escola, o Bolsa Família, e no decorrer do tempo conseguimos fazer investimento nas casas, algumas compraram animais para criação, outras investiram em transporte. Hoje temos outra qualidade de vida", celebra.

Atentas ao que acontece no contexto nacional do país, as Margaridas também sentiram o impacto no aumento do preço dos alimentos e a estagnação do valor repassado pelo Pnae, afirma Santos. A resposta a esse cenário adverso, segundo a liderança, é reforçar a luta em defesa das políticas públicas. "Agricultores antes tinham produção e dificilmente tinham venda garantida. Mas o Pnae veio para fortalecer e dar segurança de plantar e ter a certeza de que vai vender. Essa é uma política pública que foi conquistada por nós, que vivemos na luta, na defesa de melhorias para a agricultura familiar. É uma coisa que não podemos perder, e não vamos deixar que acabem com ela", enfatiza a agricultora.

 

*Rafael Oliveira é comunicador popular da Articulação Nacional de Agroecologia.

**Acompanhe a coluna Agroecologia e Democracia. A Articulação Nacional de Agroecologia (ANA) é um espaço de diálogo e convergência entre movimentos, redes e organizações da sociedade civil brasileira engajadas em iniciativas de promoção da agroecologia, de fortalecimento da produção familiar e de construção de alternativas sustentáveis de sistemas alimentares. Leia outros artigos.

***Este é um artigo de opinião. A visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato.

Edição: Vivian Virissimo