Há dez dias, um tiroteio em Paraisópolis, na zona sul de São Paulo, interrompia uma agenda da campanha de Tarcísio de Freitas (Republicanos), que concorre ao governo de São Paulo. O episódio foi imediatamente rotulado como “atentado” por bolsonaristas, principalmente pela Jovem Pan, emissora de TV ligada à extrema-direita brasileira, que passou o dia noticiando o episódio como um ataque direto à comitiva do candidato.
Freitas, em sua primeira coletiva após o tiroteio, preferiu não usar a palavra “atentado”, receoso com os frágeis argumentos para tal conclusão. Mas insistiu na versão de que seria alvo de uma investida bélica de moradores de Paraisópolis.
“Não foi um atentado contra a minha vida, não foi um atentado político, não tinha cunho político-partidário. Foi um ataque no sentido de que, se você intimida uma pessoa que está lá fazendo uma visita, isso é um ataque”, disse Freitas.
A declaração já tinha alguns tons abaixo do primeiro tuíte feito pelo candidato bolsonarista, minutos após o tiroteio em Paraisópolis. “Em primeiro lugar, estamos todos bem. Durante visita ao 1º Polo Universitário de Paraisópolis, fomos atacados por criminosos.”
Mais tarde, em entrevista aos jornalistas, o secretário de Segurança Pública de São Paulo, João Camilo, tratou de escolher bem as palavras para refutar a tese do atentado, com cuidado, para não atingir a candidatura de Freitas, apoiada pelo atual governo paulista, comandado por Rodrigo Garcia (PSDB).
“Nenhuma hipótese é dispensada, contudo, [com] os dados que nós temos até agora, eu não considero que esse fato que vá ao encontro do que o próprio candidato comentou [atentado], talvez ruído com a presença policial, talvez intimidação”, informou Camilo, ainda na tarde do dia 17 de outubro.
Em seu programa eleitoral do dia 17 de outubro, a campanha do presidente Jair Bolsonaro (PL) corroborou a tese do atentado. “O candidato Tarcísio de Freitas e sua equipe foram atacados por criminosos em Paraisópolis”, disse o presidente.
No mesmo dia, o vice da chapa de Bolsonaro, Braga Netto, usou a palavra “atentado" para se referir a troca de tiros que ocorreu na região. “Você não entra em uma comunidade feito a do Alemão sem ter uma autorização do tráfico. Você tem que conversar com o tráfico antes, porque mesmo que o tráfico não ataque, pode ter tiroteio. Veja o que aconteceu com o Tarcísio, acabou de sofrer um atentado.” A declaração foi concedida à Rede Vida.
O episódio, que poderia ser de fácil elucidação, acumula incertezas e a campanha de Tarcísio de Freitas tem as respostas que poderiam cooperar para encerrar o episódio. Em plena corrida eleitoral, a quatro dias da votação, a equipe do candidato do Republicanos faz força para que o assunto desapareça. Mas as dúvidas seguem.
Os buracos
Passava de 11h20, do último dia 17 de outubro, quando um tiroteio interrompeu a agenda de campanha de Tarcísio de Freitas no Polo Universitário de Paraisópolis. Os disparos fizeram correr parte da população que se aglomerava no local, toda a imprensa foi para os fundos da unidade e a equipe do candidato se abaixou em uma sala.
A partir daí, sobram dúvidas. O que se sabe é que Felipe Lima, de 27 anos, foi assassinado na rua Manoel Antônio Pinto, que fica a cerca de 100 metros do Polo Universitário de Paraisópolis. A vítima tinha passagem por roubo à residência e assalto à mão armada.
O Boletim de Ocorrência lavrado pela Polícia Civil, na 88ª Delegacia de Polícia e que narra o episódio em Paraisópolis, foi obtido pelo Brasil de Fato. Nele, um dos policiais que participaram da operação afirma que o tenente Ronald Quintino Correa Camacho foi até a rua Manoel Antônio Pinto, onde o corpo do jovem estava e retirou uma lista de objetos do local, modificando a cena do crime antes da chegada da perícia.
“Um coldre, celular, relógio, um carregador de pistola, além de diversos cartuchos e estojos, que arrecadou no local, afirmando que seria para que não fossem perdidos ou subtraídos por populares”, informa o policial militar no Boletim de Ocorrência.
Para o ex-ouvidor das Polícias de São Paulo, Benedito Mariano, o BO coloca em xeque a versão do atentado. “Pode ter sido uma armação, está muito estranho. Pode ter havido cooperação dos policiais que estavam lá. Eu acho que essa ocorrência não foi devidamente esclarecida. Eu tenho dúvidas se houve tiroteio, é urgente que as câmeras dos uniformes apareçam. Além do Boletim de Ocorrência, sabemos também que a equipe do Tarcísio pediu que as imagens fossem apagadas.”
Ainda de acordo com o BO, quatro homens, divididos em duas motos, passaram duas vezes na frente do Polo Universitário Paraisópolis. Na segunda oportunidade, perguntaram quem havia autorizado o evento no local. A versão dos policiais no boletim não diz qual foi a resposta para a dúvida dos motociclistas.
Em seguida, rajadas de tiros foram escutadas na região, de acordo com o BO. Os policiais desceram para a rua Manoel Antônio Pinto e teriam trocado tiros com os quatro rapazes. Lima pode ter sido assassinado por um dos agentes que estavam à paisana.
Apesar de a PM e seguranças de Freitas alegarem que os motociclistas estavam armados, não foi encontrada nenhuma arma no local, nem próxima do corpo de Lima. De acordo com o delegado-geral da Polícia Civil, Osvaldo Nico Gonçalves, o armamento “pode” ter sido levado por moradores da região.
O agente da Abin
No dia 25 de outubro, uma semana após o episódio, um áudio divulgado pela Folha de São Paulo deixou ainda mais fragilizada a hipótese do atentado contra Freitas. Marcos Andrade, câmera da Jovem Pan, teria sido forçado a apagar imagens que mostravam o tiroteio.
“Você filmou os policiais atirando?”, pergunta o segurança. “Não, trocando tiros efetivamente, não. Tenho tiro da PM para o alto”, responde o câmera. Então, o integrante da campanha de Freitas ordena: “Você tem que apagar.”
Nesta quinta-feira (27), o Intercept Brasil revelou que o segurança é Fabrício Cardoso de Paiva, um agente da Agência Brasileira de Inteligência (Abin), que trabalha para a campanha de Freitas.
Tarcísio de Freitas divulgou uma nota em que confirma a identidade do agente e afirma que Paiva está licenciado do cargo na Abin, sem remuneração do órgão, e que não exerce nenhuma função em nome da agência.
Em entrevista à Folha de São Paulo, Marcos Andrade confirma que Paiva estava armado e próximo do corpo de Lima. Apesar da campanha de Freitas divulgar que o agente da Abin não trabalhava em nome da agência, o câmera informou que ele utilizava a credencial do órgão.
“Eu me abrigo até uma coluna. Quando eu chego para gravar esse corpo e a moto que está no chão, chega uma pessoa falando para eu não gravar. Na hora que eu vou para a parte de cima, onde o corpo e a moto está caída, eu vejo o rapaz que eu tinha conversado a respeito de pedir reforço. Eu vejo ele armado e com distintivo da Abin”, explicou Andrade.
Em nota, a campanha de Freitas deu uma versão alheia ao áudio, ignorante completamente a contundente evidência apresentada pelo câmera da Jovem Pan. “Nunca houve nenhum impedimento por parte da campanha em relação a isso. Qualquer afirmação que questione isso é uma mentira.”
Pesquisa e debate
O impasse sobre o episódio em Paraisópolis prejudicou a campanha de Freitas, que está estagnada, tentando conter a hemorragia provocada pelas inúmeras versões que a equipe do candidato apresenta.
Pesquisa do Ipec, divulgada na última quarta-feira (26), mostram que Freitas já aparece empatado tecnicamente com Fernando Haddad (PT), na disputa pelo governo paulista. O candidato do Republicanos soma 52% e o petista 48%. A vantagem já foi de dez pontos percentuais, 55% x 45%, em favor do bolsonarista.
Integrantes da campanha de Freitas estão preocupados com o debate desta quinta na TV Globo. É provável que Fernando Haddad questione o candidato do Republicanos sobre o episódio em Paraisópolis. A resposta do bolsonarista pode determinar os rumos da eleição em São Paulo.
Edição: Rodrigo Durão Coelho