Paraíba

Coluna

Oropa, Afriquia e América-Afro-Latina: tudo por um fio

Eleições 2022 – Luta contra o racismo. - Alma Preta Jornalismo/Congresso em Foco, 14/09/2022.
o bolsonarismo mostrou-se ávido por revisionar e negacionar a história do Brasil

*Por Elio Flores*



Os historiadores se fixam tanto nas terras documentais e conteúdos tradicionais que, não raras vezes, se esquecem de olhar para as nuvens que derramam as águas da emancipação e dos direitos humanos. Miro essa imagem de A Canga (2001), do cineasta paraibano Marcus Vilar: a tradição opressiva impera na lavoura esturricada; surgem as nuvens, logo os primeiros pingos e, na apoteose da viração, a chuva torrencial; ato contínuo, o filho, supostamente alienado, liberta-se da canga e do chicote do patriarca, pega a garrucha e mata o pai opressor na frente de toda a família camponesa; então tudo se transforma, vida velha que se vai (e se esvai), vida nova que sulca a terra com outras semeaduras.  

A analogia desse drama nordestino e, portanto, universal, com o ensino de história e o currículo que praticamos, se impõe no tempo presente de mulheres e homens endemoniados no Brasil das eleições. Talvez saibamos disso, matar a mãe é mais difícil, ainda mais quando essa mãe é a dona Europa, a matriarca civilizadora. Não falemos da “bela Europa das cidades e universidades”, segundo Jacques Le Goff, e de suas “raízes medievais”, que Lucien Febvre não aprovaria como argumento curricular.  


Mapa-Mundi, projeção de Robinson, 1963. / https://www.coladaweb.com/mapas/mapa-mundi

 

É que o BB − brasil bolsominion de 2018 e 2022 - quer ser, esforça-se para ser, a Europa do nazismo e do fascismo, tão apreciada nessas duas vertentes pelos R&IB – rebanhos e intelectuais bolsonaristas. Parece que pretendem ser o estrume da terra. Peguemos as palavras de Febvre sobre o europeu (racista?) que consta em algum cantinho de A Europa: gênese de uma civilização: “esse rei dos animais, dos animais humanos”. Não por acaso, essa obra surgiu do curso proferido pelo autor, no Collège de France, nos terríveis anos de 1944 e 1945. Por aqui, no tempo presente, sabemos que o BB e os R&IB detestam ou melhor, vociferam ódio à África e à população negra. Ocorre que a “matrix” deles está na Europa europeia e na Europa norte-americana. Então, voltemos aos ancestrais deles.  

Diante da África, observemos a “Europa dos espelhos”, tão bem apresentada pelo historiador catalão Josep Fontana. A matriarca se olhou, historicamente, em pelo menos nove espelhos temporais: bárbaro, cristão, feudal, diabólico, rústico, cortês, selvagem, progressista, popular. Ciosa dessa imagem narcísica, enxergou a África, atrás de si, em quatro deles que, penso, não preciso citá-los novamente, basta evocar que se trata de uma “galeria de espelhos deformantes”, pela metáfora de Fontana. Também pode-se ver a Europa “fora da galeria dos espelhos” que, no Brasil, exigiria de nós, antes, uma tarefa braçal, quebrar os espelhos. Eis as razões instrumentalistas da história: “Para justificar sua superioridade, os europeus especularam acerca do milagre de sua história e das razões – isto é, dos méritos – que podiam explicá-lo. A primeira das coisas aduzidas é a que associa seu sucesso às qualidades de uma raça de homens superiores. O mito indo-europeu – o adjetivo ariano não parece hoje de bom gosto, mas significa a mesma coisa – surgiu na Alemanha do século 19. Inspirava-se nos progressos da linguística comparada e servia para liberar à cultura europeia de suas supostas origens mediterrâneas”. Fontana pontuou essas arianidades lá pela metade do seu livro estonteante, A Europa diante do espelho.  

Com efeito, como diria o poeta afro-antilhano Aimé Césaire, é preciso “subverter a criação”, somente possível pelo “animal humano”, para compreender a história “entre a latitude e longitude”. Quem teve o prazer surrealista de ler, como fonte poética, Diário de um Retorno ao País Natal, pode ter a certeza de que há vida e história ao sul do Mediterrâneo e na América-Afro-Latina. 


Capa da edição bilíngue da obra de Aimé Césaire. / Editora da USP - Brasil.

 

Ah, o Caribe fora dos nossos currículos!? Poesia e outros continentes neles: “O arquipélago arqueado como o desejo inquieto de negar-se, dir-se-ia uma ânsia materna de proteger a tenuidade tão delicada que separa uma da outra América; e seus flancos que destilam para a Europa o bom licor de um Gulf Stream, e uma de suas vertentes de incandescência entre as quais o Equador funambula em direção à África. E minha ilha [Martinica] não fechada, sua clara audácia de pé na popa dessa polinésia, diante dela, Guadalupe fendida em duas por sua linha dorsal e de igual miséria à nossa, Haiti onde a negritude pôs-se de pé pela primeira vez e disse que acreditava na sua humanidade e a cômica pequena cauda da Flórida onde de um negro se consuma o estrangulamento e a África gigantescamente arrastando-se até o pé hispânico da Europa, sua nudez em que a Morte ceifa com movimentos largos”. Eis aí, a geografia poética de uma história transatlântica. 

Quem cita Césaire, deve também trazer à baila o seu conterrâneo e contemporâneo, Frantz Fanon. Num dos seus “textos políticos” encaixado na obra póstuma Por uma Revolução Africana, Fanon coloca a real dimensão do racismo e do racista no mundo contemporâneo. O racismo passa longe de ser “uma disposição de espírito”. Vejamos: “Existe na ONU [1956] uma comissão encarregada de lutar contra o racismo. Filmes sobre o racismo, poemas sobre o racismo, mensagens sobre o racismo... As condenações espetaculares e inúteis sobre o racismo. A realidade é que um país colonial é um país racista. Se na Inglaterra, na Bélgica ou em França, apesar dos princípios democráticos afirmados respectivamente por estas nações, ainda há racistas, são esses racistas que, contra o conjunto do país, têm razão. Não é possível subjugar homens sem logicamente inferiorizar de um lado o outro. E o racismo não é mais do que a explicação emocional, afetiva, algumas vezes intelectual, desta inferiorização. Numa cultura com racismo, o racista é, pois, normal. A adequação das relações econômicas e da ideologia é, nele, perfeita”. O racismo, para Fanon, não é simplesmente “uma tara psicológica”. Parece evidente, agora, que não existe um racismo à brasileira, o que de fato permeia tudo isso é um currículo eurocêntrico e racializado. O racismo é Mapa-Mundi em tempos de capitalismo global. 

Uma palavra sobre o papa da nossa teoria social que vendeu a escravidão como amolengada e aceitava, como mel de cana, o racismo nosso de cada dia. No país que mais mata jovens negros e mulheres negras no hemisfério ocidental, Gilberto Freyre precisa descansar, podemos, alegremente, caiar o seu túmulo e reescrever o seu epitáfio para ser o que é: um clássico datado que interpreta o Brasil do alpendre da Casa Grande. A extrema-direira insiste em recuperar dos quintos dos infernos a noção de mestiçagem, já criticamente enterrada pelos movimentos sociais (afro-indígenas), pelo feminismo negro e pelo pensamento decolonial.  Ademais, um currículo de história precisa problematizar algo que jamais passou pela cabeça do “mestre de Apipucus”, isto é, o fato de que a invisibilidade negra (e africana em geral) é a norma naturalizada da nossa vida social, escolar e curricular.  

Pois é, em 2018, um dramático retrocesso político corria à mancheia em todas as instituições públicas, redações midiáticas, salas de justiça e igrejas do mercado. Um governo de homens brancos, conservadores, velhos e corruptos, alçado ao poder por um golpe de Estado, vil e acanalhado, começou confiscar identidades, terras, direitos e utopias das populações pobres, negras e indígenas. O pior ainda estava por vir. O direito à história da África e da cultura afro-brasileira, tão recente e tão precário nas nossas estruturas curriculares, talvez não suporte o mito do capitão branco por mais quatro anos. Nas primeiras mil e uma noites do governo da extrema direita, o bolsonarismo mostrou-se ávido por revisionar e negacionar a história do Brasil e, mesmo a história geral, para começar a justificar os seus crimes por trás das suas presumíveis arianidades. A máxima nazista de que mentira dita dez vezes torna-se verdade começou a produzir uma “arquitetura da destruição” na condição e dignidade da pessoa humana nas periferias, comunidades quilombolas e indígenas.  

As eleições de 2018 mostraram que não há um “racismo à brasileira”, espécie de certidão de nascimento da nossa teoria social. O racismo, a misoginia, a homofobia e o ódio de classe, tudo isso saiu da boca do capitão branco (e de milhares de outras bocas maldizentes) e entrou pela urna com o gesto – mente e mãos sedentas de mortes alheias − dos dedos no fuzil apertando o gatilho. Mentira, cinismo ou ironia dos 56 milhões de votos derramados naqueles olhos hitlerianos que jamais piscaram humanidade? Fiquemos apenas com a profecia que, aparentemente, não foi escrita para nós, ocidentais dos trópicos: “Aquela nação já se foi. A ela o que mereceu. A vós o que merecestes. Ninguém vos pedirá contas do que eles faziam” (Alcorão; 2, 134). 

O professor congolês Elikia M’Bokolo lembra-nos que o historiador não se satisfaz em contar o que foi, pois o embate nunca é demasiado honesto diante de muita arenga – guerras culturais, midiáticas e jurídicas − do tempo presente. Não há garantia de qualquer serenidade historiográfica. A guerra de narrativas atinge em cheio o ofício de quem pratica historiografia. Num governo racista e reacionário parece que passamos quatro anos nas cordas, quase nocauteados: “a relativa serenidade da história sábia não suprime, desgraçadamente, as derivações passionais das remontagens e dos tráficos sobre a memória e o passado”, escreveu M’Bokolo no seu magistral livro África Negra: história e civilizações. Decerto que ainda paira sobre (e entre) nós a “melancolia desarmante” que desafia o futuro ao emparedar o presente.  

As eleições de 2022 chegaram. Antes, levaram consigo quase 700 mil mortos barrados das urnas pelas políticas do negacionismo. Como se fosse uma virtude bíblica, o BB e os R&IB ainda disputam voto a voto de arian@s brasilian@s, negr@s e indígenas. Entretanto, da beira do precipício social de onde estamos, vislumbramos o desfiladeiro verdejante e as brumas do amanhã se descortinam para a nação transatlântica e multirracial que se levantará com a força, dignidade e resiliência dos nossos dedos indicadores. Que a vitória seja monumental a ponto de fazer mudar o ensino de história e os currículos. Esperançar é preciso. 

LULA-LÁ, BRILHA UMA ESPERANÇA! 

 

PARA SABER MAIS 

FANON, Frantz. Pele negra, máscaras brancas. Salvador: EDUFBA, 2008. 

FLORES, Elio C. Afro-Clio: direitos humanos, história da África e outras artesanias. João Pessoa: Editora do CCTA, 2019. 

GONZALEZ, Lélia. Por um feminismo afro-latino-americano. Rio de Janeiro: Zahar, 2020. 

NASCIMENTO, Beatriz. Uma história feita por mãos negras. Rio de Janeiro: Zahar, 2021. 

 

*Professor do Departamento e Programa de Pós-Graduação em História da UFPB e integrante do NEABI/UFPB.

 

Edição: Heloisa de Sousa