Uma derrota amarga que pede revisão das estratégias de luta pela preservação da floresta, mas pequenas e simbólicas vitórias que permitem aos povos da Amazônia a continuidade do sonho de Chico Mendes. A avaliação sobre o resultado do primeiro turno das eleições é de Ângela Mendes, filha do defensor histórico da Floresta Amazônica e ativista socioambiental que atua na Aliança dos Povos da Floresta e no comitê Chico Mendes.
Em entrevista ao Brasil de Fato, Ângela reconheceu uma "derrota acachapante" da esquerda no Acre, apesar de um pequeno encolhimento do bolsonarismo em relação à eleição de 2018. Mas, em âmbito nacional, a ativista comemora a chegada de companheiras como Sônia Guajajara e Célia Xacriabá, entre outras lideranças pautadas pela preservação ambiental, ao parlamento.
"Nem só de tristeza a gente viveu nessa eleição. A situação ainda é ruim, mas a gente vê aí o início de uma transição da bancada BBB [boi, bala e bíblia] para 'bancada do cocar', que, se Deus quiser, ela vai só aumentar."
Segundo a ativista, é preciso criar uma bancada de defensoras e defensores da floresta também nos estados da Amazônia Legal. "Hoje nós não temos [pelo Acre] nenhum representante que traga essa pauta do meio ambiente, das populações tradicionais do território. Isso foi uma realidade em toda a Amazônia", analisa.
A realidade violenta a que estão submetidas as pessoas que lutam para preservar a floresta contra o avanço das invasões, da grilagem e do desmatamento – "violência que é muito disparada a partir das falas, do discurso do inominável" – também é motivo de preocupação para Ângela Mendes.
"A gente tem muito medo do que vai acontecer. No sul do Amazonas também não fica diferente, temos muitas lideranças ameaçadas de morte. Infelizmente, isso só vem à tona quando o fato é concretizado. São lideranças indígenas, lideranças extrativistas, é uma situação totalmente caótica."
Leia a entrevista completa:
Brasil de Fato: Ângela, a gente queria contar com a tua experiência e a tua vivência como defensora da Floresta Amazônica, como ativista, socioambiental fazer uma análise dos resultados desse primeiro turno, principalmente partindo desse ponto de vista da defesa da Floresta Amazônica, das condições de vida das comunidades extrativistas, da luta encampada por ti e também pelo teu pai Chico Mendes. Qual é a avaliação que tu podes trazer pra gente nesse momento?
Ângela Mendes: Regionalmente foi o cenário pior possível assim. A gente continua com um governo que tem forte alinhamento com bolsonarismo, com agronegócio, agora se sentindo ainda mais livre para continuar impulsionando esses retrocessos no campo social, no campo ambiental.
No parlamento, a gente também não visualiza um bom cenário. Nossa bancada é extremamente de direita. E de uma direita conservadora. Hoje nós não temos [pelo Acre] nenhum representante que traga essa pauta do meio ambiente, das populações tradicionais do território.
Isso foi uma isso foi uma realidade em toda a Amazônia. Agora a gente tem aí pra frente ainda um outro cenário de segundo turno que é de onde a gente espera que venha uma boa notícia.
E a gente sabe que, mesmo que o Lula seja eleito, os desafios são grandes, né. Em qualquer cenário a gente não terá vida fácil, mas nos dá esperança de que em algum momento a gente consiga reverter todo esse retrocesso, todo esse desmonte.
Se observarmos a história recente dos governos do Acre, vemos que governos de esquerda foram sucedidos por governos que entram com uma pauta extremamente reacionária, falando abertamente contra as unidades de preservação e as reservas extrativistas, por exemplo. A que tu atribuis esse cenário?
Passamos 20 anos com um governo que transformou o Acre numa referência de política ambiental, que absorveu e que acolheu um projeto político muito pautado na luta liderada pelo meu pai e pelos companheiros dele e companheiras na floresta, de base sustentável, de respeito às populações tradicionais, de valorização da cultura, extrativista, seringueira.
E de repente veio essa mesma onda que atingiu todo o país em 2018, né? A onda das fake news, esse movimento antipetista, a mamadeira que a gente sabe qual é.
O Acre não foi indiferente a esse cenário. E aí houve essa transição maléfica, com muito prejuízo pra gente. Agora novamente esse cenário se consolida, se repete.
A gente tem inclusive que fazer as reflexões necessárias pra saber onde que a gente não corrigiu nos rumos, a partir do cenário de 2018. Porque a esquerda aqui teve uma derrota acachapante.
O Acre durante muito tempo foi essa referência, construiu políticas públicas voltadas para uma economia de base sustentável e hoje a gente tem nossa floresta sendo ocupada, sendo invadida na verdade, seja pelo afrouxamento das leis, da legislação ambiental, mas, principalmente, pelo estímulo do atual governo, que assim que assumiu disse que ia perseguir servidor que cumprisse com sua obrigação de fiscalizar.
A esquerda aqui teve uma derrota acachapante.
Então ele deu um tom de que o governo seria para o agronegócio. E o estado está parado, né? Todo mundo indo embora aqui do Acre, e o atual governo não fez uma obra sequer. Mas foi reeleito, então a gente tem que fazer uma leitura sobre onde estamos errando para poder reagir à altura.
Nesse cenário assim de varrida do bolsonarismo e dos aliados a ele no Acre, como é que ficam as condições de luta? Como estão as condições de segurança da militância?
A gente percebe uma situação muito difícil. Mas o bolsonarismo encolheu aqui no estado. Pouco, mas encolheu. A gente vem de um de uma conjuntura de mais de 70% de votos pro Bolsonaro em 2018. Percebe-se que uma parte do povo acreano tem uma consciência, tirou essa vergonha de votar nessa criatura.
O bolsonarismo ele tem como característica essa violência, que é muito disparada a partir das falas, do discurso do inominável. O "dia do fogo" é uma é uma demonstração clara disso, e outros atos de violência também aconteceram no bojo dos discursos dele.
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O Brasil já é um campeão de assassinatos de ativistas e a gente tem certeza que, com essa sensação cada vez mais crescente de impunidade, eles estão no poder e, se ganharem de novo, vão se sentir ainda mais acima da lei e esse cenário vai se tornar ainda mais violento.
Aqui no Acre, a gente já percebe esses sinais, já percebe a violência crescendo principalmente na floresta. No Pará, os assassinatos, a violência não cessa nunca. A gente tem muito medo do que vai acontecer. No sul do Amazonas também não fica diferente, temos muitas lideranças ameaçadas de morte. Infelizmente, isso só vem à tona quando o fato é concretizado. São lideranças indígenas, lideranças extrativistas, é uma situação totalmente caótica.
Agora a gente sabe que isso se dá por conta dos atos do atual governo e, se a gente quiser dar um freio nisso, a gente não pode reeleger essa criatura que está aí.
Do ponto de vista das respostas institucionais a esses ataques, uma série de estruturas foi criada ao longo dos anos 2000 para proteger unidades de conservação, proteger defensores e defensoras da floresta e dos direitos humanos, por exemplo. Como vocês tem percebido a situação ICMBio e de outras estruturas de combate à criminalidade que quer avançar sobre a floresta na região?
O ICMBio, ele já nasce com uma estrutura muito deficiente. Ele já nasce não conseguindo dar conta de atender essa população das Unidades de Conservação de Uso Sustentável, que são as reservas extrativistas, que são as florestas nacionais, todas as unidades que permitem o uso coletivo e sustentável.
Nesse atual governo, essa situação ela se aprofundou. Tanto houve o desmonte, um desmantelamento da estrutura do ICMBio quanto houve uma militarização, né? Militares assumindo lugares de técnicos, que estudaram, que fizeram concurso para estar onde estavam.
Está tudo militarizado, seguindo comando do bolsonarismo, do militarismo, né? E do Mourão que criou aquele conselho da Amazônia que não serve pra nada a não ser para desviar dinheiro.
Temos muitas lideranças ameaçadas de morte. Infelizmente, isso só vem à tona quando o fato é concretizado.
Então o ICMBio não tem a menor capacidade hoje de atender a realidade desses territórios. Até porque o engessamento é tanto e o assédio é tanto que os servidores têm até medo de ir cumprir com o seu trabalho, com a sua função de fiscalizar, de apreender, de multar. Então hoje eles estão totalmente amarrados, né? Assim como todos os outros órgãos que têm essa atribuição de gestão, de fiscalização.
Como esse desmonte, como essa realidade violenta alterou as condições de vida dos povos que moram nas reservas extrativistas, partindo por exemplo, da experiência na Reserva Extrativista Chico Mendes?
Primeiro que hoje a Reserva Extrativista Chico Mendes está sendo totalmente invadida, loteada. Invadida inclusive por facções criminosas que estão se aliando aos grileiros.
Mas, se por um lado a gente tem essa situação de medo, de insegurança extrema das pessoas que estão lá, por outro lado, a gente tem uma população que está produzindo, que está mostrando o verdadeiro potencial da floresta em pé, de uma Amazônia que deveria ser preservada, que não é o boi, que não é a soja, que não é a madeira.
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São pessoas que estão usando seus conhecimentos tradicionais pra mostrar que a Amazônia é muito mais do que isso, que ela merece um outro olhar. É isso que os governos, que as autoridades precisam enxergar.
Mas, logicamente, como eles tem alinhamento com o capital, eles não vão olhar pra isso. Então a floresta hoje é vista unicamente como fonte de matéria prima para o sistema que tem destruído a Amazônia e violentado seus povos.
Aqui, nas reservas extrativistas, tem um povo que produz, tem um povo que ousa com ideias inovadoras, mas que precisa de apoio, não precisa desse cenário de violência, desse medo que está se instalando, se aprofundando com a atual situação de invasão, de grilagem e de violência.
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Ângela, tu mesma, quando relataste o cenário do Acre, disseste que houve de alguma forma um retrocesso do bolsonarismo e um avanço, ainda que tímido da esquerda. No cenário nacional é possível pontuar algumas vitórias para os povos da floresta, como a chegada de Sônia Guajajara ao parlamento. Como tu avalias esse cenário?
Menino, a gente tem pequenas alegrias, né? Uma dessas é esse início da "bancada do cocar" que teve a Soninha [Guajajara], essa pessoa incrível, e a Célia Xacriabá também, que estão aí unificando essas forças e que eu tenho certeza que vão incomodar muito esses bolsonaristas e essa bancada de morte que continua liderando.
A gente teve também a eleição do [Guilherme] Boulos que num outro viés também foi uma vitória muito importante.
Eu tenho certeza que essas pessoas elas vão ser solidárias à Amazônia. A gente teve a reeleição também de um parceiro muito forte, nosso deputado Ailton Faleiro, do PT do Pará.
E a gente teve também eleição de representantes do MST, que é uma outra alegria. Nem só de tristeza a gente viveu nessa eleição. A situação ainda é ruim, mas a gente vê aí o início de uma transição da bancada BBB [boi, bala e bíblia] para bancada do Cocar, que, se Deus quiser, ela vai só aumentar.
Também se somam as candidaturas trans, as mulheres e a população negra também que elegeram representantes. Então essa diversidade, essa identidade brasileira, a verdadeira identidade brasileira é que precisa estar no parlamento.
Não adianta a gente eleger só o nosso presidente. É muito importante, mas se a gente conseguisse ter feito uma bancada ainda mais forte, a gente tem certeza que as mudanças que a gente gostaria que acontecessem viriam mais rápidas.
Mas ninguém nunca disse que isso seria fácil. A gente tem certeza que num governo Lula ele vai saber conduzir da melhor forma possível.
Ângela, quer dizer então que a realidade descrita pelo Chico Mendes naquela "Carta aos jovens do futuro" só foi adiada? De transformar em passado essa realidade de dor, de sofrimento e de morte...
Eu acho que a carta, que ele escreveu em 1988, muito visionária, ela é a carta que espelha a realidade que a gente está vivendo hoje de uma geração de jovens muito ativos, muito engajados. É só você ver o cenário eleitoral desse período, com tantos jovens se movimentando, com campanhas coordenadas e lideradas por jovens, como a "Amazônia Viva", a "Amazônia de Pé".
A gente sabe desse grande movimento por exemplo que a Gretta [Thunberg] traz lá da Europa, mas que a gente tem aqui também muito forte nos territórios. É desse movimento, é dessa revolução socialista que ele fala. Eu acho que nunca a carta dele nunca foi tão atual. A geração futura na verdade é a geração presente.
Por fim, Ângela, qual deve ser a prioridade zero de um eventual governo Lula, considerando a liderança em todas as pesquisas de intenção de voto, do ponto de vista dos povos da floresta, das reservas extrativistas, da defesa da Amazônia?
São tantas as prioridades, ele já inclusive prometeu criar um ministério, criar um espaço de construção, ou de reconstrução, dessa política ambiental e de segurança para os ativistas.
Quando eu falei por exemplo do ICMBio, eu esqueci de te dizer também que o governo tem um programa nacional de proteção a defensores de direitos humanos, comunicador social e também ativista. Só que não funciona. Então esse programa precisa funcionar.
A geração futura na verdade é a geração presente.
O governo tem que garantir uma política que proteja a Amazônia e que proteja os seus povos. E depois pensar em como estabelecer essa relação econômica, a partir dos conhecimentos tradicionais dessa população, que desempenha papel tão importante, de guardiã, de protetora desse bioma.
Mas também olhar pra todos os outros biomas que são tão importantes. A gente está falando de Amazônia, mas a gente sabe da importância do Cerrado, a gente sabe da importância da Caatinga, do Pantanal, da Mata Atlântica, de todos esses biomas.
É preciso trazer esse olhar de garantir a vida e os direitos das populações e dos territórios. Isso seria por si só um grande ato político.
Edição: Nicolau Soares