Coluna

Aumento de ministros no STF? A culpa não é do Chávez

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STF tem sido alvo de ataques de Bolsonaro - Cristiane Sampaio/Brasil de Fato
Narrativa é mera cortina de fumaça para esconder colonialidade discursiva e servil sobre a Venezuela

Um dos assuntos mais comentados na última semana foi a possibilidade de Bolsonaro aumentar o número de ministros do Supremo Tribunal Federal (STF). Esse argumento é automaticamente colado a uma comparação com um aumento da Corte Venezuelana no período em que Hugo Chávez presidia o país como sendo base para uma "autocracia".

Quando se trata de dar um tom depreciativo a um Estado ou a um povo, os clichês são sempre os mesmos. A grande mídia reproduz, para a construção de um senso comum, sempre uma crítica com um local de partida e, geralmente, os caminhos levam aos africanos, aos asiáticos ou aos latino-americanos. Se não presta, o produto é chinês ou paraguaio; se o conflito for em Moçambique, no Congo ou na África do Sul é considerado "tribal"; se há uma legitimidade popular em lideranças de governos na América Latina é  "populismo".

Esse artigo poderia ter outro nome: se a publicação fosse acadêmica, seria "a colonialidade discursiva sobre a Venezuela". É fato que a forma de reprodução do poder é legitimada a partir dos valores liberais construídos socialmente pelos grupos dominantes. Assim, só é considerado legítimo o poder atrelado à colonialidade, para usar a categoria de Anibal Quijano, quando há um controle do trabalho pelo capital e o seu exercício se dá com hierarquia racial. Na Bolívia, é antidemocrática a reeleição; na Alemanha, a recondução é sinônimo de estabilidade. Por que será? Há uma colonialidade, inclusive, discursiva quando tratamos as questões latino-americanas, que ficam nítidas neste exemplo.

O Tribunal Supremo de Justiça (equivalente ao STF na Venezuela) aumentar ou diminuir o número de Magistrados, por si só, não interefere na qualidade democrática deste ou de nenhum país. Sobretudo, se a designação destes magistrados se dá pela Assembléia Nacional. Repito, pela Assembleia Nacional, não pelo Presidente da República. Este é o caso da Venezuela, em que a Assembleia Nacional designava os magistrados, não Hugo Chavez - ou seja, outro Poder da República.

Aos desavisados, ao que parece conhecedores da política institucional venezuelana, em 2022 essa mesma Assembleia Nacional aprovou a redução de juízes do Tribunal Supremo de Justiça de 32 para 20. Nem por isso trata-se de medida antidemocrática. Diga-se de passagem, lá os magistrados possuem o mandato por 12 anos, uma medida democrática, diferente do Brasil em que os Ministros ficam até se aposentar, medida pouco afeita a um regime que preze por práticas democráticas.

No caso do Brasil, a situação é distinta, pois o próprio Bolsonaro se beneficiaria dessa indicação, caso a realizasse, visto que no Brasil compete ao Chefe do Poder Executivo - ou seja, ao presidente da República - esta escolha de ministros do STF. Na Venezuela não!

Neste debate é fundamental destacar mais um elemento que faz com que, um possível aumento de ministros no STF no Brasil não tenha qualquer comparação com as mudanças institucionais da experiência venezuelana: a luta contra uma agressão imperialista.

Uma mudança do número de ministros no STF tenderia manter a legitimação liberal do poder em períodos democráticos, tal como se viu em boa parte do século XXI. E no caso de ser realizada por um governo como o de Jair Bolsonaro, serviria para chancelar na Corte Constitucional as medidas neoliberais e conservadoras para mantê-lo no poder, sem questionar esta base de submissão.

A Corte Constitucional da Venezuela, ao enfrentar essas questões, sem ser mero orgão chancelador de medidas neoliberais, por si só, altera completamente a sua funcionalidade se comparada à brasileira.

De todo modo, a narrativa de um aumento de magistrados, em determinado período, de um Tribunal da Venezuela é mera cortina de fumaça para esconder duas coisas:

  • o interesse não é sobre a alteração do Judiciário, que ocorre em diversos países, mas sobre as garantias individuais e sociais asseguradas pela Corte, que dificultam que os grandes monopólios acessem os recursos estratégicos da Venezuela, como o petróleo.  
  • a colonialidade discursiva e servil sobre a Venezuela, mesmo que ela seja usada para apontar uma crítica política ao bolsonarismo.  

Se a Venezuela seguisse as cartilhas liberais, pretensamente neutras e imparciais, para o seu funcionamento, tal como é parte da história da América Latina, hoje, o petróleo responsável por garantir as principais políticas públicas na Venezuela estaria na mão das transnacionais e a culpa pelo aumento de Ministros do STF não seria do "mau" exemplo do Chávez.

*Gladstone Leonel Júnior é Professor Adjunto da Faculdade de Direito e do Programa de Pós-Graduação em Direito Constitucional da Universidade Federal Fluminense. Doutor e Pós-Doutor em Direito pela Universidade de Brasília. Realizou o estágio doutoral na Facultat de Dret, Universitat de Valencia, Espanha. Membro da Secretaria Nacional do IPDMS – Instituto de Pesquisa, Direitos e Movimentos Sociais. Leia outros textos.

**Este é um artigo de opinião. A visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato.

Edição: Nicolau Soares