Estamos saindo do primeiro turno das eleições de 2022 para o Senado, Câmara Federal, Assembleias Legislativas, Governadores e Presidente da República. E os resultados no Senado e na Câmara Federal especialmente revelam um avanço expressivo da ultradireita, com a eleição de bancadas majoritárias de parlamentares conservadores nos poderes legislativos e governadores bolsonaristas já eleitos em Estados importantes como Rio de Janeiro e Minas Gerais, além de colocar no segundo turno, se opondo ao ex-presidente Lula, com votação bastante expressiva, o Presidente Bolsonaro, depois de um governo desastroso no trato da saúde com a pandemia da covid-19, do meio ambiente, cultura e educação, principalmente.
Explicar este fato até pouco tempo passaria por análises exclusivamente nos campos das ciências política e sociais, sem levar em conta questões específicas relativas ao modo de consumo de determinados produtos e serviços.
Porém, identificar os motivos que nos levaram aos resultados das eleições de 2018 e das eleições de 2022 passa necessariamente por entendermos as características de acesso à internet no Brasil, assim como o poder de mercado do Facebook, WhatsApp e Google/Youtube, tendo em vista os impactos deletérios que as campanhas desinformativas, difundidas por meio destas plataformas, têm surtido na consciência dos eleitores, com reflexos graves para higidez do processo eleitoral e sustentabilidade das instituições democráticas.
É certo que há outros fatores relevantes para o resultado destas eleições adotados pelo governo Bolsonaro, tais como o orçamento secreto e a “compra de votos” por meio da distribuição de última hora, e contra a lei eleitoral, do auxílio Brasil aos eleitores de baixa renda, assim como a adesão por uma parte significativa do eleitorado à ideologias de direita e conservadoras, como resposta, inclusive, ao crescimento do poder político de determinadas igrejas.
Mas pesquisas recentemente divulgadas, como a do NetLab, da Universidade Federal do Rio de Janeiro, mostram que o sistema de recomendação do Youtube tem privilegiado vídeos com conteúdo pró-Bolsonaro, especialmente da Jovem Pan, com quem a plataforma tem acordo assinado desde 2017 no programa Google News Initiative, com o pagamento de apoio de 300 mil dólares.
Há diversos outros estudos apontando que está havendo uso ilegal de aplicações na internet de redes sociais, mensageria e vídeos, com o potencial claro de desequilibrar o jogo eleitoral, beneficiando conteúdos de direita, o que levou o Tribunal Superior Eleitoral (TSE) a instituir um grupo de enfrentamento à desinformação, em colaboração com entidades da sociedade civil e de pesquisas e com universidades.
Além disso, os relatórios políticos divulgados pelo Google, contemplando o período a partir de 17 de novembro de 2021, mostram os principais anunciantes de política nas suas plataformas, ocupando em primeiro lugar o canal de ultradireita Brasil Paralelo, com quase R$ 375 milhões.
Há ainda a pesquisa realizada pelo Instituto Nacional Ciência e Tecnologia – INCT-DD, com a participação das Universidades Federal de Minas Gerais, de Campinas, de Brasília e Estadual do Rio de Janeiro, registrada no Tribunal Superior Eleitoral, neste ano de 2022, mostrando que o Facebook lidera com 33% a aplicação de preferência das pessoas para se informarem sobre política na internet, seguido por Instagram (16%) e WhatsApp (10%).
É importante reconhecer também que têm sido determinantes para os disparos em massa de campanhas de desinformação, sem a devida supervisão inclusive sobre uso arbitrário e abusivo de dados pessoais, com o predomínio de conteúdos reacionários e conservadores, o efeito cruzado entre as diversas plataformas, que se utilizam de trechos de vídeos dos canais de direita para direcionarem desinformação especialmente pelo WhatsApp.
Sendo assim, é da maior relevância que tanto os partidos políticos quanto as autoridades passem a dar a devida importância ao fato de que no Brasil, segundo dados do CETIC.br, do Comitê Gestor da Internet no Brasil e dados da Agência Nacional de Telecomunicações, a maioria da população acessa a internet pela rede móvel, e que 90% dos internautas das classes D e E e 65% da classe C acessam a rede exclusivamente por dispositivos móveis e por meio de planos pré-pagos com franquias baixíssimas – a média é de 3Gb por mês.
Depois de esgotada a franquia de dados contratada para o mês, os usuários – estamos falando de mais de 80 milhões de brasileiros eleitores – têm o acesso à internet bloqueado e passam a acessar exclusivamente o Facebook e o WhatsApp, que patrocinam o tráfego dos dados relativos a estas aplicações junto às empresas provedoras do serviço de conexão, promovendo incontestável discriminação e violando de forma grave a neutralidade da rede, de acordo com o Marco Civil da Internet.
Ou seja, estamos falando de milhões de eleitores que, depois de bombardeados por campanhas de desinformação, financiadas predominantemente por grupos coordenados de direita, usando as plataformas do Facebook e WhatsApp, como vêm demonstrando as pesquisas, se quiserem checar os conteúdos recebidos em outros sites e canais, ficam impossibilitados por não terem acesso pleno à internet.
Portanto, a despeito da louvável iniciativa do TSE no combate à desinformação, com a assinatura de memorandos de compromisso com as plataformas de aplicações em fevereiro deste ano, a repetição que está ocorrendo agora de eventos ocorridos nas eleições de 2018, com efeitos corrosivos para as garantias eleitorais e democráticas, evidencia que os problemas decorrentes do uso ilegal dessas plataformas é muito maior e mais transversal, envolvendo não só aspectos normativos definidos pelo tribunal, mas outros, que indicam a necessidade de enfrentamento a questões desafiadoras como a preponderância do poder econômico das big techs e os problemas de acesso desigual à internet.
Enfrentar estes problemas vai desde aprovarmos leis que estabeleçam uma regulação democrática para as práticas algorítmicas das empresas de aplicações na atividade de gerenciamento e controle sobre o fluxo de informações, como é o caso do PL 2630/3030 e rever a legislação eleitoral quando estabelece sobre o impulsionamento das propagandas eleitorais na internet, até as políticas públicas de universalização do acesso e a adoção de medidas regulatórias para conferir efetividade ao direito à neutralidade da rede.
Sem estas medidas, continuaremos reféns dos esquemas internacionais tão bem engendrados pela ultradireita, como apontaram Steven Levitsky, Daniel Ziblatt e Giuliano Da Empoli, em suas obras já bem difundidas “Como as Democracias Morrem” e “Os Engenheiros do Caos”, retrocedendo mais e mais nos direitos fundamentais e sociais conquistados com tanto esforço ao longo da história.
*Flávia Lefèvre é integrante da ONG Diracom (Direito à Comunicação e à Democracia) e advogada especialista em telecomunicações, direitos do consumidor e digitais
**Este é um artigo de opinião. A visão da autora não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato.
Edição: Felipe Mendes