Passadas as eleições de primeiro turno, um novo cenário político se avizinha no país: o Congresso Nacional ficará mais conservador a partir do ano que vem, quando começa o mandato dos 594 candidatos eleitos. Especialistas ouvidos pelo Brasil de Fato analisaram os rumos possíveis do Poder Legislativo federal a partir da eleição do próximo presidente da República, a ser escolhido no dia 30 de outubro.
A cientista política Grazielle Albuquerque, professora visitante da Universidade Federal do Ceará (UFC), destaca o possível ressurgimento de pautas que reproduzem métodos adotados na Operação Lava Jato, costumeiramente ligada ao uso de manobras jurídicas voltadas à aniquilação política de adversários.
Pautada no uso de investigações de corrupção de forma associada à fabricação de escândalos midiáticos, a prática, bastante estudada atualmente nos campos das ciências jurídica e política, é chamada de “lawfare” [“guerra jurídica”, em tradução literal].
A projeção da especialista está ancorada na eleição de Sérgio Moro (União) ao Senado, bem como nos resultados que Deltan Dallagnol (Podemos) e Rosângela Moro (União), esposa de Moro, colheram das urnas no último domingo (2): os dois serão deputados federais na legislatura 2023-2026. A eleição dos três dá sobrevida à desgastada imagem da Lava Jato, o que tende a apimentar os debates a partir do ano que vem.
"A gente vai ter de novo pautas lavajatistas que estavam no corner – a partir, inclusive, da reabilitação do Lula no processo eleitoral, por conta das decisões do Supremo – voltando a serem encampadas porque essas pessoas vão ter um palanque permanente no Congresso Nacional ”, realça Grazielle.
A observação da pesquisadora se alinha ao que Rosângela Moro já atiçou no debate público: no último dia 3, a advogada postou uma mensagem no Twitter evocando a eleição do trio e associando o feito ao que chamou de “primeira bancada anticorrupção”. Na mesma data, a advogada compartilhou uma postagem do União Brasil em que o partido se referia a ela como alguém que será “uma das defensoras do dinheiro público em Brasília”.
Impeachment & STF
A presença de nomes mais conservadores na nova configuração do Legislativo também pode trazer à baila uma outra pauta, desta vez ligada ao Supremo Tribunal Federal (STF): o andamento de medidas como pedidos de impeachment de membros da Corte, que têm sido alvo frequente do presidente Jair Bolsonaro (PL). O ex-capitão alimenta desde os últimos anos uma crise institucional permanente com a instituição, com ataques e ameaças destinadas especialmente ao ministro Alexandre de Moraes.
Em agosto de 2021, o atual chefe do Executivo chegou até mesmo a protocolar um pedido de impedimento de Moraes junto ao Senado, mas foi barrado pelo presidente da Casa, Rodrigo Pacheco (PSD-MG), que rejeitou o pleito. A Casa é a responsável pela avaliação desse tipo de solicitação. A depender de quem será o próximo presidente da República, esse tipo de medida pode fermentar e gerar solavancos políticos nos próximos anos, especialmente se Bolsonaro vier a ser reeleito.
“Olhando especificamente pro Senado e pra eleições de nomes ligados ao bolsonarismo, como os ex-ministros do Bolsonaro Tereza Cristina, astronauta Marcos Pontes, Damares Alves e o próprio Sérgio Moro, que declarou voto ao Bolsonaro e se elegeu senador, a gente tem uma possibilidade mais real, mais significativa de impeachment de ministros do Supremo. É uma composição no Senado que, de fato, torna viável essa possibilidade de que algum ministro venha a ser ‘impeachmado’, o que nunca aconteceu na história do país”, aponta Grazielle Albuquerque.
Para retirar um magistrado da Corte do cargo, são necessários 41 votos, a maioria simples do plenário da Casa, que tem 81 cadeiras. O PL, atual partido de Bolsonaro, terá a maior bancada do Senado, com 14 parlamentares. Oito deles foram escolhidos nas urnas no domingo (2). A lista de apoiadores do ex-capitão recém-eleitos inclui, além dos nomes citados pela professora da UFC, outras figuras políticas de dentro ou de fora da sigla de Bolsonaro, como o atual vice-presidente da República, Hamilton Mourão (Republicanos), o ruralista Magno Malta (PL) e outros personagens que podem se alinhar ao presidente conforme a maré de cada pauta.
Em termos numéricos, além dos 14 membros do PL, um eventual segundo governo Bolsonaro pode contar ainda com os sete membros do PP, legenda que integra hoje a base legislativa do ex-capitão, e os três do Republicanos. Membros de outras siglas – como União Brasil e PSD, por exemplo – podem também ser atraídos pelo bolsonarismo, a depender de qual será o resultado das urnas no próximo dia 30.
“A outra questão é que isso também influencia na escolha de novos indicados ao Supremo. A gente sabe que, embora geralmente o Senado, de maneira ordinária, chancele os nomes escolhidos pelo Executivo, com uma composição do Senado muito próxima ao Executivo esse processo se facilita demais, a depender de quem será o próximo presidente da República”, analisa Grazielle.
No ano que vem, a Corte verá dois ministros se aposentarem. O primeiro deles será Ricardo Lewandowski, em maio, e a segunda será a atual presidenta do STF, Rosa Weber, que encerra sua jornada na instituição em outubro. Com isso, o próximo ocupante do Palácio do Planalto terá espaço para indicar os nomes que irão ocupar essas duas disputadas cadeiras do Supremo.
“Se a gente for traduzir [o contexto] em pontos significativos pra pensar a próxima legislatura, teremos pautas lavajatistas de novo em cena e um Senado muito mais refratário ao Supremo, com possibilidade de impeachment, com facilidade de escolha de nomes ligados ao bolsonarismo [pro STF], caso Bolsonaro seja reeleito. E, mesmo para reformas que precisam da participação do Senado de maneira mais significativa, o bolsonarismo ganhou uma grande frente de adeptos, seja pra garantir uma governabilidade a um eventual governo Bolsonaro, seja pra fazer algo que se transforme em óbice a um possível governo Lula”, destrincha a professora.
Mobilidade
Por outro lado, o analista e consultor político Antônio Augusto de Queiroz pontua que, caso eleito, Lula (PT), cujo ideário é ligado ao campo progressista, teria condições de empurrar o Poder Legislativo para uma postura mais próxima do centro. No caso da Câmara dos Deputados, por exemplo, o partido do ex-presidente sairá de uma bancada de 56 membros eleita em 2018 para uma com 68 integrantes que irá assumir o mandato a partir do ano que vem.
Será a segunda maior agremiação da Câmara dos Deputados, atrás apenas do PL de Jair Bolsonaro, que emplacou 99 nomes para a próxima legislatura. No caso do PT, que atualmente se associa ao PCdoB e ao PV na chamada Federação Brasil da Esperança, a composição de forças progressistas poderia a chegar à faixa dos 130, marca semelhante à atual dos partidos de oposição (PT, Psol, PSB, PDT, Psol e Rede) na Casa, considerando as cadeiras conquistadas no último dia 2.
"O patamar realmente é baixo de apoio consistente. Acontece que tem uma margem grande de apoio condicionado, que são os partidos mais de centro, que naturalmente vão pra base de qualquer governo, seja ele de esquerda ou de direita. Além disso, com a capacidade de diálogo que tem, o Lula poderia levar pra sua base parte dos próprios partidos que hoje dão sustentação ao Bolsonaro”, vislumbra Queiroz, que é ex-diretor do Departamento Intersindical de Assessoria Parlamentar (Diap).
Ele destaca que, no PL, no exemplo, 40% dos parlamentares são bolsonaristas, mas o restante é “pragmático”. “Quando digo isso, estou falando de pessoas que, no passado, já apoiaram o PT e outros governos e que não têm compromisso de maneira programática. Eles são pragmáticos. Então, na hipótese de termos um governo Lula, ele teria uma oposição numericamente grande, mas essa não seria uma oposição real, na medida em que boa parte desse pessoal é pragmático”, explica o analista.
Considerando o raio-x da atual legislatura e traçando um paralelo entre essa configuração e a da próxima correlação de forças, os desenhos são muitos semelhantes. Quem quer que seja o governante, a tendência é que ele se depare com uma oposição de pelo menos 130 nomes, grupo que pode ser mais ou menos elástico e barulhento conforme o andar da carruagem.
"Os resultados [das urnas em 2022] acabam reforçando e consolidando o tamanho e a importância da direita conservadora no Congresso. Esse é um desenho que vem se desenvolvendo há uns dez anos, com um sinal bastante significativo nas eleições de 2014, um reforço muito importante em 2018, na onda da vitória do Bolsonaro, e que agora, de certa forma, se consolida”, registra o pesquisador Júlio Canello, do Observatório do Legislativo Brasileiro, ligado à Universidade Estadual do Rio de Janeiro (Uerj).
As maiores bancadas eleitas este ano para a Câmara, por exemplo, ficaram da seguinte forma: PL (99), PT-PCdoB-PV (80), União Brasil (59), PP (47), Republicanos (42), MDB (42) e PSD (42). Na sequência, aparecem PSDB/Cidadania (18), PDT (17), PSB (14), Psol/Rede (14), Podemos (12), avante (7), PSC (6), Patriota (4), Solidariedade (4), Pros (3), Novo (3) e PTB (1).
“Lembrando que o comportamento do Congresso varia de acordo com a visão de mundo do presidente da República. Se ele for mais à esquerda, consegue trazer o parlamento mais pro centro. Se ele for mais pra direita, empurra o Legislativo mais ainda pra direita, que é o que pode acontecer, caso o eleito seja Bolsonaro, por exemplo”, reforça Queiroz.
Desenho
Seguindo uma linha do raciocínio semelhante, Canello assinala que alguns detalhes do jogo político vão depender de como irá caminhar o bloco do centrão, segmento que hegemoniza o Congresso na atualidade e reúne partidos do campo da direita liberal.
“O centrão de hoje é o mesmo centrão fisiológico, que negocia, que está mais aberto, mais disposto do que o que existia 15 anos atrás, ou esse centrão já não é mais de centro e é cada vez mais conservador, mais à direita? A vitória do PL e o alinhamento dos parlamentares nos últimos quatro anos com o governo têm demonstrado que o centrão não é exatamente de centro. Ele é muito mais à direita, e isso deve criar dificuldade em termos de governabilidade para o avanço de determinadas políticas e propostas”, pontua o pesquisador da Uerj.
Canello sublinha, no entanto, que isso não necessariamente desencadeará um travamento na engrenagem das ações governamentais em uma eventual gestão Lula adiante: “O que isso sinaliza é que, considerando a hipótese de ele ganhar a eleição, a sua agenda política junto ao Congresso deve ser muito mais de centro mesmo do que de esquerda ou incisiva em reformas e mudanças numa agenda mais progressista e tradicional de esquerda”.
Edição: Glauco Faria