A tentativa de captura das cores e símbolos nacionais aperfeiçoa-se com a captura de uma data cívica
Por José Carlos Garcia*
No dia 10 de setembro, o Ministro-Corregedor do Tribunal Superior Eleitoral – TSE, e ministro do STJ, Benedito Gonçalves, concedeu medida liminar em duas Ações de Investigação Judicial Eleitoral – AIJE, que podem ser consultadas aqui e aqui, para o fim de “determinar a supressão de trechos do vídeo contendo a cobertura do Bicentenário da Independência pela TV Brasil e proibir a utilização de imagens oficiais do evento na campanha do primeiro e do segundo réu”, isto é, o Presidente da República, e candidato à reeleição, Jair Bolsonaro, e seu candidato a vice, o general reformado Walter Braga Netto. Em 13 de setembro, o Plenário do TSE referendou, por unanimidade, a liminar do Ministro Benedito Gonçalves.
Em seu voto, o Ministro, mesmo sublinhando, corretamente, que a análise do pedido de liminar não se confunde com o exame final de mérito, entendeu que estava demonstrado nos autos que “a associação entre a candidatura e o evento oficial partiu da própria campanha do Presidente candidato à reeleição, que chegou a se utilizar de inserções de propaganda eleitoral para convocar o eleitorado a comparecer à comemoração do Bicentenário, em vinheta que confere destaque à presença do candidato (identificado com slogan e número) na comemoração oficial”.
Para o Ministro, é “patente que o teor da entrevista se desviou do enfoque institucional e cívico. A festividade do Bicentenário da Independência é deixada de lado, enquanto Bolsonaro faz uma defesa veemente de seu governo e, enfatizando uma de suas principais pautas de campanha, conclama os espectadores a lutar por sua liberdade, que estaria ‘em jogo’ juntamente com ‘o futuro’. Mesmo a convocação para as pessoas irem para as ruas ‘de verde e amarelo’ não pode ser dissociada do empenho do candidato, em sua propaganda eleitoral, em fazer o mesmo tipo de convite quando se dirigia ao eleitorado”. Desta forma, haveria uma confusão, provocada pela campanha do candidato Bolsonaro entre sua candidatura e sua participação, como Presidente da República, em ato cívico oficial, organizado e custeado pelo Erário, o que quebraria a isonomia com os demais candidatos. Mais uma vez, em suas próprias palavras: “O uso de imagens da celebração oficial na propaganda eleitoral é tendente a ferir a isonomia, pois explora a atuação do Chefe de Estado, em ocasião inacessível a qualquer dos demais competidores, para projetar a imagem do candidato e fazer crer que a presença de milhares de pessoas na Esplanada dos Ministérios, com a finalidade de comemorar a data cívica, seria fruto de mobilização eleitoral em apoio ao candidato à reeleição”.
A captura não apenas de uma festa cívica importante, como o Dia da Independência, mas do seu Bicentenário, pela candidatura à reeleição do atual Presidente da República abre mais um perigoso precedente, sem paralelo recente de que este autor possa lembrar-se, de confusão entre o exercício da mais alta magistratura do país, múnus público, e as atividades de campanha eleitoral, essenciais à democracia, mas de âmbito privado. Como diz o Ministro Benedito Gonçalves, esta iniciativa quebra a isonomia entre a candidatura à reeleição e as demais candidaturas à Presidência, algo que, em si mesmo, já compromete um ideal democrático elementar, que é a igualdade de condições entre os candidatos, nos termos da Constituição e das leis eleitorais. Vai, entretanto, além disso. O ministro Benedito Gonçalves, de forma sintética e irretocável, fundamenta seu voto, dentre vários outros argumentos, com a constatação de que a utilização das imagens da comemoração do Bicentenário por aquele candidato tendia a construir a versão de que “a presença de milhares de pessoas na Esplanada dos Ministérios, com a finalidade de comemorar a data cívica, seria fruto de mobilização eleitoral em apoio ao candidato à reeleição”.
A tentativa de captura das cores e símbolos nacionais por uma única campanha, assim, aperfeiçoa-se com a captura de uma data cívica de todos os brasileiros e brasileiras, o Dia da Independência, para um único segmento social e político, buscando a tradução de que este setor teria o monopólio do amor à pátria e à nacionalidade. Por oposição, nenhuma outra candidatura expressaria esse amor, de sorte que apenas uma campanha o expressa. Não seguir essa campanha implicaria adotar postura diametralmente oposta, ou seja, ódio à pátria e à nacionalidade.
Todo este jogo implica a configuração de uma estética totalizante, em que apenas uma campanha, uma candidatura, uma liderança, pode encarnar a nacionalidade e a pátria; por conseguinte, todas as demais são “inimigas”, na chave do jurista e pensador nazista alemão, Carl Schmitt. Ao elaborar os fundamentos jurídicos do regime nazista, Schmitt reforçava a figura do líder (Führer) como única capaz de perceber os sentimentos e desejos do povo alemão (SCHMITT, Carl. État, mouvement, peuple: L’organisation triadique de l’unité politique. Paris: Kimé, 1997; desconheço a existência de edição em português). Esta estética envolve o ataque constante à democracia representativa e suas instituições, bem como o contato direto com “as massas”, que passam a ser lidas sem mediações e diretamente nas ruas. O jurista fascista brasileiro, Francisco Campos, um dos autores do Ato Institucional nº 1 do Golpe de 1964 e antigo admirador do nazismo, já deixava clara esta característica nos anos 1940, em plena Guerra Mundial:
“Na Alemanha, enquanto um parlamento em que já houve o maior número de partidos procurava inutilmente chegar a uma decisão política mediante os métodos discursivos da liberal-democracia, Hitler organizava nas ruas, ou fora dos quadros do governo, pelos processos realistas e técnicos, por meio dos quais se subtrai da nebulosa mental das massas uma fria, dura e lúcida substância política, o controle do poder e da nação.
(...)
Quem quiser saber qual o processo pelo qual se formam efetivamente, hoje em dia, as decisões políticas, contemple a massa alemã, medusada sob a ação carismática do Führer, e em cuja máscara os traços de tensão, de ansiedade e de angústia traem o estado de fascinação e hipnose” (CAMPOS, Francisco. “A política e o nosso tempo”, in O estado nacional: Sua estrutuctura, seu conteúdo ideológico. 3. ed. Rio de Janeiro: Livraria José Olympio Editora, 1941, pp. 1-32).
Não se trata, todavia, de mera estética da captura do nacional, de suas cores e de seus símbolos, como se uma única força contivesse todas as demais em si mesmas, à exceção dos “inimigos internos” (que, a exemplo do que ocorria já nos anos 1930, parecem seguir sendo os comunistas, reais ou imaginários, as mulheres, os gays e as lésbicas, as pessoas pretas e “de outras raças inferiores”, segundo este pensar perverso que é o fascismo). Isto, em si, seria já aviltante em um regime democrático. Mas há uma faceta ainda mais grave, que é a mobilização violenta de seguidores para a ação contra o suposto “inimigo interno”. Também isto, que vemos a todo momento, não é novidade, e já consta das lições do famigerado “gênio do mal”, Francisco Campos, para quem o centro da vida política moderna, em 1941, era o primado do irracional, do inconsciente coletivo, e que
“uma integração política, num regime em que se torna possível organizar e mobilizar as massas, só pode operar mediante forças irracionais, e a sua tradução só é possível na linguagem bergsoniana do mito, – não, porém, de um mito qualquer, mas, precisamente, do mito da violência, que é aquele em que se condensam as mais elementares e poderosas emoções da alma humana.” (CAMPOS, Francisco, op. cit., p. 14)
Veja-se que, nas últimas semanas, já no âmbito do processo eleitoral, tivemos nada menos do que três casos de violência política com resultado morte: o assassinato do tesoureiro do PT, Marcelo Arruda, a tiros e em sua própria festa de aniversário, por um policial apoiador da campanha de reeleição do atual Presidente, Jorge Guaranho, no dia 09 de julho, em Foz do Iguaçu, no Paraná; a morte de Benedito Cardoso dos Santos, apoiador do ex-Presidente Lula, com várias facadas e golpes de machado no pescoço, por Rafael Silva de Oliveira, apoiador do atual Presidente, em 09 de setembro, no município de Confresa, Mato Grosso; e, no dia 13 de setembro, o ruralista e apoiador do Presidente atual, Luiz Carlos Ottoni, morreu em colisão ao tentar fugir do local em que jogara sua caminhonete Hilux sobre o carro da vereadora do PT e candidata Cleres Relevante, em Salto do Jacuí, no Rio Grande do Sul.
Além destes casos extremos, são inúmeros os relatos de agressões e violências nesta campanha, seguramente algo sem precedentes desde a redemocratização. Desde então, sempre houve casos localizados de violência política, de regra envolvendo famílias ou grupos políticos locais rivais, mas nada nas proporções atuais, envolvendo todas as regiões do país e em decorrência direta da dinâmica eleitoral nacional, e não local. E ainda foi inaugurada a nova modalidade de agressões e assédios a jornalistas, em geral mulheres – uma faceta específica e com conteúdo expressamente machista – como no recente caso da agressão sofrida pela jornalista Vera Magalhães pelo deputado estadual paulista, também apoiador do atual Presidente, Douglas Garcia, no dia 14 de setembro, em São Paulo.
Não é à toa que esta coluna vem tratando tanto de violências políticas, físicas ou simbólicas, recentemente, com destaque para o texto essencial da coluna de 02 de setembro, de Cláudia Dadico, que adverte que “deter o avanço do ódio na América do Sul, como tarefa urgente, significa salvar a própria ideia de democracia, pluralismo e diversidade no continente”.
Lamentável que, em pleno bicentenário nacional, estejamos às voltas com temas como estes, que deveriam já estar relegados a um passado distante, mas que retornam das mais pútridas catacumbas para assombrar a grande festa cívica que deve ser a eleição do dia 2 de outubro. E a todas essas, cabe-nos perguntar, depois de toda essa polêmica envolvendo nossa Data Nacional: afinal, que fim levou o coração de Dom Pedro I, que nos foi emprestado pelo governo de Portugal?
*José Carlos Garcia é Doutor em Direito Constitucional pela PUC-Rio, juiz federal, membro da Associação Brasileira de Juristas pela Democracia (ABJD) e da Associação Juízes para a Democracia (AJD).
**A coluna Avesso do Direito mostra uma visão mais ampla do Direito e suas relações com a vida, a democracia e a pluralidade. É escrita pelos juízes federais José Carlos Garcia e Cláudia Maria Dadico, ambos membros da Associação Brasileira de Juristas pela Democracia (ABJD). Leia outros textos.
***Este é um artigo de opinião. A visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato.
Edição: Glauco Faria