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O que aconteceu na Constituinte do Chile? Dois elementos de uma derrota

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A mobilização migra da sociedade civil para o debate constituinte e com ele a rearticulação de setores conservadores, que foram derrotados ao logo deste processo - Martin Bernetti / AFP
Um projeto constitucional ousado teria sérias dificuldades de se consolidar sem organizações fortes

A militância brasileira acordou incrédula com o resultado da Convenção Constituinte Chilena. Como uma Constituição considerada avançada e construída por vários setores da sociedade civil foi rechaçada com um grau de rejeição relevante? Se foram esses mesmos chilenos que há pouco tempo aprovaram a sua convocação teriam, simplesmente, rechaçado o seu conteúdo? Na semana passada a pesquisadora Natália Cordeiro, em um texto certeiro1, já apontava os riscos e algumas razões de um possível rechaço.

A princípio é importante destacar que o Processo Constituinte é uma espécie de pacto social firmado, a partir de uma conjunção de fatores políticos que permitiram a proposição de uma nova Carta Política regente em um país. Não se trata de um ato revolucionário em si, ao contrário, pode arrefecer ímpetos de rupturas mais profundas, embora na América Latina tenha servido nas últimas décadas como aglutinador de forças democráticas e populares nos processos de “cambio” de países como Venezuela, Equador e Bolívia.

Ainda é cedo para cravar todas as razões para esse resultado, que impactou as expectativas de mudança de um país que ainda carrega a marca pinochetista na sua atual Constituição. De todo modo, neste primeiro momento, cabe chamar a atenção de dois elementos que nos permitem problematizar esse processo.

1) O Momento Político e a desinformação:

A euforia carreada por um ambiente de lutas sociais e mudanças, responsável pelo processo de abertura constituinte aprovado por quase 80% da população chilena em outubro de 2020, sofreu fortes alterações.

A mobilização migra da sociedade civil para o debate constituinte e com ele a rearticulação de setores conservadores, que foram derrotados ao logo deste processo. Além da dificuldade de comunicação dos constituintes com a população, esclarecendo no que consistiam as mudanças, o ambiente de produção de desinformação, as chamadas fake news ganharam força com o andamento do debate constituinte. Elementos que garantiriam uma maior democratização e participação de grupos historicamente excluídos no corpo constitucional chileno, como o reconhecimento da plurinacionalidade, são deturpados no debate e vendidos como se causadores da desagregação do país ou grupos contrários à pátria unificada.

Outras informações falsas circulavam na sociedade e confundiam os chilenos, sobretudo, quando envolviam pautas relacionadas aos costumes como: a legalização do aborto, a paridade de gênero, a expropriação de casa própria, a perda de pensão e até, como se fosse possível, uma Constituição alterar as relações sociais de produção e trazer para o Chile o “fantasma” do comunismo articulado com outros países da região.

O processo constituinte foi sendo descredibilizado e perdendo legitimidade na sociedade. Enquanto os setores conservadores articulavam e financiavam este cenário de desinformação do processo corrente, os setores progressistas, responsáveis pela formulação do texto constitucional, demoraram a se organizar e debater na sociedade a importância de aprovarem o texto produzido. Conforme relata a pesquisadora Natália Cordeiro, isso só ocorreu após a entrega do documento político ao presidente Gabriel Boric, ocorrido há aproximadamente dois meses.

2) As Forças Partidárias e organizativas:

Mesmo com o estallido social, a partir de 2019, não se pode subestimar os setores de direita mais bem articulados da América Latina e responsáveis por fazer do Chile o laboratório do neoliberalismo nos anos 70. Após serem derrotados nas eleições presidenciais e na eleição dos constituintes (onde tinham minoria incapaz de barrar alterações constitucionais realizadas por setores progressistas), a direita herdeira do legado de Pinochet, os seus partidos, as articulações militares e empresariais, não aceitariam mais uma derrota em vão e se articularam para isso.

Por outro lado, há um enfraquecimento dos grupos organizados e das forças partidárias neste processo constituinte. A ideia que se vende é de novas formas organizativas capazes de captar ambientes de mudanças, como o caso dos deputados constituintes independentes ou “convencionais independentes”, que não teriam ligação orgânica a um partido e seriam indivíduos que viriam “de fora da política tradicional”.

Na prática, o que pode ser perceptível, é uma perda de força dos projetos coletivos sucumbindo a grupos menores ou indivíduos sem uma base social capaz de se articular em processos sociopolíticos transformadores. Um projeto constitucional ousado, como se pretendia para a realidade constitucional do Chile, teria sérias dificuldades de se consolidar sem organizações e partidos progressistas fortalecidos.

O que se viu foi uma esquerda tradicional já desgastada, sem fôlego para enfrentar a contraofensiva conservadora, que veio com este rechaço à proposta constitucional e se fará presente em outros momentos políticos e ainda articulado por setores da sociedade, como o corporativo empresarial e o ativismo judicial. As instituições liberais do Estado de Direito, o que é uma redundância, mas importante se afirmar, impõem limites a mudanças tão vigorosas como as propostas neste processo constituinte. Só um bloco progressista coeso garantiria a consolidação desse texto.

Hoje, a Constituição avançada e fundamental de ser aprovada, que foi apresentada, não reflete a correlação de forças do Chile.

Edição: Glauco Faria