O presidente Jair Bolsonaro (PL) foi questionado no debate entre candidatos a presidente realizado no domingo (28) sobre o aumento da fome no Brasil durante seu governo. Prontamente, citou um estudo do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) para contestar a realidade verificada por diferentes pesquisadores.
“Fizemos milagre durante a pandemia”, disse. “Dados do próprio Ipea apontam que, desde o início do meu governo, em 2019, no mundo, o número de famílias em situação de extrema pobreza cresceu. No Brasil, diminuiu: passou de 5,1 milhões para 4 milhões.”
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Esses mesmos números, aliás, já foram propagados por ministros, como Ciro Nogueira (Casa Civil) e Adolfo Sachsida (Minas e Energia), durante a campanha eleitoral. O que nenhum deles falou –e tampouco Bolsonaro disse– é que esses dados estão sendo contestados por estudiosos e pelos próprios funcionários do Ipea.
Dizem que esta é a campanha dos “extremos”. É sim. É a guerra entre quem conseguiu reduzir a pobreza extrema no Brasil (Bolsonaro) e os que começaram a torná-la extremamente alta com a pior crise econômica da história do Brasil (Lula/Dilma/PT). A verdade vai vencer as narrativas. pic.twitter.com/VjMPAhriUv
— Ciro Nogueira (@ciro_nogueira) August 28, 2022
Os números constam de uma nota da presidência do Ipea divulgada em agosto. A nota foi intitulada “Expansão do Programa Auxílio Brasil: uma reflexão preliminar”. É assinada pelo economista Erik Alencar de Figueiredo, nomeado presidente do instituto em março.
O estudo de Figueiredo tem 20 páginas. Avalia o impacto dos pagamentos extras do Auxílio Brasil concedidos com base na Proposta de Emenda à Constituição (PEC) dos Auxílios, aprovada meses antes da eleição após amplo esforço do governo no Congresso.
Figueiredo, que é formado pela Universidade Federal da Paraíba (UFPB) trabalhava como subsecretário de Política Fiscal da Secretaria de Política Econômica (SPE) do Ministério da Economia antes do Ipea. Ele chega a duas conclusões básicas: o Auxílio Brasil, maior programa social do governo, fez o país andar na contramão do mundo e reduzir sua extrema pobreza assim como evitou que a fome se agravasse por aqui.
Acontece que a forma como Figueiredo chegou a essas conclusões fizeram com que instituições questionassem até a motivação do estudo.
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Internações para medir fome?
Figueiredo argumenta que a fome não cresceu no Brasil já que o número de atendimento hospitalares de pacientes com sintomas de desnutrição não cresceu. A Associação Brasileira de Saúde Coletiva (Abrasco) informou que a análise de Figueiredo, baseada no Sistema de Informações Hospitalares (SIH), é distorcida e ignora complexidades sociais.
“Negar a atual extensão da insegurança alimentar brasileira (principalmente a do tipo grave, referente à fome), além de ignorar uma situação vista diariamente nas ruas, é negar a ciência e tentar criar uma vida imaginária que milhões de brasileiras e brasileiros, infelizmente, não vivenciam atualmente”, declarou a Abrasco, em nota pública.
Maior pandemia da história, maior crise hídrica em 100 anos, maior guerra europeia em 75 anos. Como resultado a pobreza, o desemprego e a inflação aumentam no mundo. MAS no Brasil temos queda da pobreza, queda da inflação e queda do desemprego. Brasil porto seguro do investimento pic.twitter.com/jXRvU8CBhd
— Adolfo Sachsida (@ASachsida) August 23, 2022
A própria Abrasco cita que dois relatórios recentes, de 2020 e 2022, da Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional (Rede PENSSAN) apontaram o aumento da insegurança alimentar no Brasil. Segundo os últimos dados divulgados, hoje, 33 milhões de pessoas passam fome no Brasil e 125 milhões de brasileiros enfrentam algum grau de insegurança alimentar –isto é, precisaram reduzir a quantidade de comida e/ou alterar a qualidade do que comem.
@brasildefato_ Enquanto 33 milhões de pessoas passam fome no Brasil, Bolsonaro afirma que: "Você vê alguém pedindo pão? Não vê, pô" em entrevista à Jovem Pan. #BdF ♬ som original - Brasil de Fato
O Grupo de Pesquisa Nutrição e Pobreza do IEA (Instituto de Estudos Avançados) da Universidade de São Paulo (USP) também emitiu uma nota sobre o estudo do Ipea. Ratificou a existência de 33 milhões de brasileiros passando fome hoje no país. Citou também que “o número de pessoas abaixo da linha da pobreza cresceu para 23,7% em 2021, o maior percentual em série histórica de dez anos, levando à marca de 19,8 milhões de pessoas pobres no país”.
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“O momento exige que lideranças sociais, gestores públicos comprometidos com a realidade e academia estejam mobilizados em torno de ações emergenciais, de um lado, mas também de forma articulada, de outro, aos esforços para promover a retomada de um projeto de sociedade que articule políticas estruturantes de combate à vergonhosa situação de brasileiras e brasileiros que não têm o que comer”, complementou o IEA-USP.
Pessoas que vivem abaixo da linha da pobreza sobrevivem com até R$ 465 por mês. Já na extrema pobreza, vivem com renda individual menor que US$ 1,90 por dia –ou seja, cerca R$ 300 por mês.
O Auxílio Brasil dá hoje R$ 600 por mês a 20 milhões de famílias.
Estudo sem revisão
Já Associação dos Funcionários do Ipea (Afipea) declarou em nota que a divulgação do estudo de Figueiredo, meses antes da eleição, “desrespeita frontalmente os protocolos internos normatizados para a publicação de estudos e pesquisas” do instituto.
Segundo a Afipea, “a divulgação e publicização de pesquisas no Ipea está condicionada, em regra, à discussão, avaliação e aprovação prévia pelos pares, e a sua finalidade precípua é a preservação da qualidade e do rigor dos trabalhos divulgados”. A associação destacou ainda que o estudo sobre o Auxílio Brasil é “uma nota assinada única e exclusivamente pelo presidente da instituição”, no caso, Figueiredo.
Pensou que ia escapar hoje, né, safada? É falso que 33 milhões de brasileiros passam fome. Esses números foram FABRICADOS por um estudo fraudulento feito por ONGs de esquerda. O que os estudos sérios mostram é que a pobreza está caindo no Brasil enquanto sobe no resto do mundo. pic.twitter.com/TNgrRJo2gL
— Filipe G. Martins (@filgmartin) August 22, 2022
A Afipea informou ainda que a divulgação do estudo, durante a campanha eleitoral, viola as regras de conduta dos agentes públicos no período eleitoral e desrespeita os servidores do instituto que têm cumprido esses regulamentos. Para a Afipea, esse desrespeito configura, inclusive, “explícito abuso de poder político”.
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“A violação dos protocolos internos para a produção de reflexões preliminares publicizadas com a marca do Ipea constitui profundo desrespeito aos servidores da casa”, informou a associação. “Além disso, a utilização da instituição para a produção subliminar de propaganda governamental em período de defeso eleitoral configura explícito abuso de poder político, devendo ser coibida pelas autoridades."
Procurado pelo Brasil de Fato, o Ipea não se pronunciou.
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Edição: Rodrigo Durão Coelho