O presidente que governará o país pelos próximos quatro anos, a partir de 2023, terá na economia um grande desafio. O Brasil tem hoje mais de 9% de seus trabalhadores desempregados, a renda média de quem trabalha está estagnada há dez anos e 33% da população passa fome.
Fazer o país crescer e gerar emprego é necessidade. Contudo, caso o país eleja um novo presidente neste ano, ele não terá à disposição de seu governo um dos órgãos mais importantes para definição dos rumos da economia: o Banco Central (BC).
O BC é o grande responsável pela política monetária do país: controla a quantidade de moeda em circulação na economia e, com isso, é crucial para o controle da inflação e também da atividade econômica.
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Apesar disso, durante seu governo, Bolsonaro sancionou uma lei que dá autonomia ao órgão, desvinculando suas decisões das políticas de governo. A mesma lei estabelece, inclusive, mandatos para o presidente do BC. Isso quer dizer que ele já não pode mais ser demitido por decisão do presidente, como antes. Seus mandatos, aliás, são de quatro anos e terminam exatamente no meio de cada mandato presidencial.
Ou seja, caso Bolsonaro não seja reeleito, o novo presidente da República terá de conviver por pelo menos dois anos com um presidente do BC que não foi escolhido por ele. O atual presidente do órgão, com mandato até o final de 2024, é Roberto Campos Neto, ex-executivo do Banco Santander indicado por Bolsonaro ao cargo.
Sob gestão de Campos Neto, a taxa básica de juros da economia brasileira, a Selic, mais que dobrou sob justificativa de que isso era necessário para conter a inflação. Quando ele assumiu o Banco Central, ela era de 6,5% ao ano. Hoje, é de 13,75%. Mesmo assim, a inflação oficial do país acumulada em 12 meses supera os 10% –maior nível em seis anos.
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Aprovação polêmica
A autonomia do BC sempre foi uma pauta de políticos liberais brasileiros e teve a oposição da esquerda. Em 2019, após Bolsonaro tomar posse e seu governo ganhar aliados no Congresso, o senador Plínio Valério (PSDB-AM) apresentou um projeto de lei sobre o assunto.
Esse projeto foi votado e aprovado durante a pandemia, em 2021, o que gerou protestos de opositores. O economista Mauricio Weiss, professor da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), lembra que boa parte do debate sobre o tema se deu de forma remota, apesar da complexidade da questão e do fato de ela não ser tão urgente.
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“O momento era inadequado e todo o trâmite do projeto, pela falta de debate público, também foi inadequado", disse Weiss, ao Brasil de Fato.
A advogada Maria Clara de Mello Ivo, que pesquisa sobre o tema, aponta ainda que há uma controvérsia jurídica sobre a lei. Ela explicou que, com base na Constituição, só o Executivo poderia propor a autonomia do BC. O projeto aprovado, porém, é de parlamentar.
Ela lembra que o Partido dos Trabalhadores (PT) e o Partido Socialismo e Liberdade (Psol) chegaram a recorrer ao Supremo Tribunal Federal (STF) contra a lei. No Supremo, contudo, num julgamento dividido, a constitucionalidade da lei foi confirmada.
E o emprego?
A lei que deu autonomia ao BC estabeleceu, logo em seu primeiro artigo, que o objetivo principal do órgão é “assegurar a estabilidade de preços”, isto é, controlar a inflação. Coloca como objetivo secundários a estabilidade do sistema financeiro, a suavização das flutuações da atividade econômica e a busca pelo pleno emprego.
É justamente na importância secundária que a lei dá ao pleno emprego que estão as principais críticas à autonomia do BC.
Nos Estados Unidos, por exemplo, o Federal Reserve (Fed) é considerado autônomo. Lá, entretanto, a busca pelo pleno emprego tem tanta importância quanto o controle da inflação.
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Sem isso, segundo Marcio Pochmann, economista e professor da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), o BC brasileiro deixa de servir a população como um todo e acaba cooptado pelo mercado financeiro, maior interessado nos juros altos.
“A direção do Banco Central no Brasil tem sido tomada pela postura anti-desenvolvimento já tem certo tempo”, afirma Pochmann. “Ele se transformou numa instituição que, ao invés de conduzir o dinheiro poupado pela população para as atividades produtivas, converteu-se na instituição que comanda a financeirização da riqueza e que permite a transferência da riqueza da população de menor renda para os ricos no Brasil.”
Essa transferência se dá justamente por conta da alta Selic vigente no país hoje. Em função disso, grande parte dos impostos pagos inclusive pelos pobres no Brasil acaba fluindo para as mãos dos ricos, os quais têm dinheiro de sobra e compram os títulos das dívidas.
Perde a democracia
Pochmann disse que, independente, o BC brasileiro fica alheio aos desejos expressos por brasileiros nas eleições. Se um presidente eleito defende uma política monetária diferente da vigente hoje, por exemplo, já não pode exigir do BC uma mudança de postura.
A economista-chefe do Instituto para Reforma das Relações entre Estado e Empresas (IREE), Juliane Furno, diz que a democracia perde com isso. “Votamos num presidente querendo que ele faça uma série de coisas. Por exemplo, que ajude no crescimento da economia para gerar emprego”, explica ela. “Só que o Banco Central pode minar essa ideia caso queira combater a inflação aumentando juros.”
Com juros altos, os empréstimos tendem a ficar mais caros. Decisões de compra e investimento acabam adiadas. A economia cresce menos.
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Acontece ainda que nem sempre a alta de juros é a melhor solução para a inflação. Mauricio Weiss afirma que o BC já elevou a Selic para conter a atual alta de preços no país. Essa elevação, entretanto, não surtiu resultado. O índice só caiu após a queda no preço dos combustíveis resultante do corte de impostos.
Weiss ressalta que, mesmo ineficaz para conter a inflação, a elevação dos juros beneficiou bancos. Para o economista, aliás, os bancos são os maiores beneficiados com a autonomia concedida ao BC. Seus executivos acabam assumindo cargos no órgão, o gerem sob ótica do mercado e voltam aos bancos após seus mandatos.
“Existe autonomia com relação ao Poder Público, mas não existe autonomia com relação ao mercado”, diz. “É o problema da porta giratória.”
“Quem se beneficia da autonomia é o setor financeiro porque, quanto mais ‘técnicos’1 no BC vindos dos bancos privados, mais os bancos ficam fortalecidos no seu regulador, que é o próprio BC”, ratifica Furno.
Dá pra mudar?
Pochmann defende que essa autonomia seja revista num eventual novo governo para que uma política de desenvolvimento possa ser implementada no país. O economista acredita que o diálogo entre autoridades monetárias e o eventual novo presidente possa fazer com que o BC abandone sua atual agenda neoliberal.
“O BC tem para viabilizar a implementação de um programa de desenvolvimento. Hoje, a visão rentista prevalece na direção atual do Banco Central”, aponta.
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A advogada Maria Clara Ivo ressalta que a mudança dependeria de um acordo político. Exigir uma nova postura do BC só seria possível após a aprovação de uma nova legislação.
“Pode existir essa pressão política sobre BC”, pontua. “Mas eu entendo que uma administração comprometida com a busca pelo pleno emprego, desenvolvimento econômico e a própria redução de desigualdades deve buscar pelas vias legislativas a revogação dessa lei da autonomia.”
Edição: Rodrigo Durão Coelho