Coluna

A sombra de Getúlio no Brasil de 2022

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Getúlio Vargas (foto), ex-presidente brasileiro, se dirigia à população interpelando a todos como trabalhadores do Brasil
Getúlio Vargas (foto), ex-presidente brasileiro, se dirigia à população interpelando a todos como trabalhadores do Brasil - Wikicommons
A História gira sobre si mesma repetindo, com outros nomes, a confrontação das mesmas forças

“Por volta das sete e meia, oito horas da manhã, ouviu-se o estampido seco (...) Subimos apressadamente para o quarto (...) Encontramos o presidente de pijama, com meio corpo para fora da cama, o coração ferido e dele saindo sangue aos borbotões. Alzira de um lado, eu do outro, ajeitamos o presidente no leito, procuramos estancar o sangue, sem conseguir. Ele ainda estava vivo. Havia mais pessoas no quarto quando ele lançou um olhar circunvagante e deteve os olhos na Alzira. Parou, deu a impressão de experimentar uma grande emoção. Neste momento, ele morre. Foi uma cena desoladora.”

O relato é de Tancredo Neves da forma como contou ao jornalista Carlos Heitor Cony, descrevendo a cena ocorrida neste mesmo dia 24 de agosto, 68 anos atrás, no Palácio do Catete, no Rio. Tancredo perdera o mandato de vereador e fora preso com a decretação do Estado Novo em 1937 mas, passados 17 anos, convertera-se no ministro da Justiça do homem acuado que se suicidara depois de mudar o Brasil. Primeiro como revolucionário em 1930, depois como ditador em 1937 e, a partir de 1951, como presidente eleito pelo voto universal. 

É interessante perceber como Getúlio e o seu legado dialogam com o país desde então, especialmente em se tratando do Getúlio da última fase. Com o tiro que desferiu no coração, ele adiou em dez anos o golpe engendrado pela direita. Com o advento da ditadura de 1964, os trabalhistas serão cassados, presos ou exilados. Mas o trabalhismo permanecerá vivo nutrido pela memória de Vargas, mais João Goulart e Leonel Brizola. Vinte e um anos mais tarde, Brizola retornará como sua grande liderança.

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As últimas décadas do século 20 presenciarão a irrupção do PT nascido na rejeição ao varguismo, marca de seu DNA paulista e uspiano. Porém, gradativamente, sobretudo depois de alcançar o poder, já neste século, irá absorvendo elementos do velho trabalhismo.

A polarização PTB/PSD x UDN aos poucos, em outro cenário internacional e dados os descontos necessários, será substituída pelo confronto PT x PSDB. Não raro o PT irá para os embates contra a centro-direita aliado ao PDT brizolista. Ao mesmo tempo, os dois governos Lula e seu presidencialismo de coalizão tornam-se bastante próximos dos arranjos de Getúlio em 1951 para acomodar gregos e troianos nos ministérios.

Outra semelhança reside na agenda política: projeto de país soberano, política externa sem vassalagem aos EUA, desenvolvimentismo, proteção ao trabalhador, defesa da Petrobras. Não foi gratuitamente que, em visita a uma plataforma, Lula repetiu o gesto de Getúlio com as mãos espalmadas negras de petróleo. 

Ao longo das décadas, a trajetória das duas lideranças populares mais importantes da história brasileira foi convergindo. Até mesmo as circunstâncias da vida as aproximam como a perseguição implacável que ambas sofreram, redundando em suicídio e prisão.

O armamento pesado de lawfare empregado contra Lula com o apoio do Departamento de Justiça dos EUA, reverbera fragmentos da Carta Testamento de Getúlio quando ele acusa “a campanha subterrânea dos grupos internacionais”, aliada aos “grupos nacionais revoltados contra o regime de garantia do trabalho”. Ou quando comenta que “quis criar liberdade nacional na potencialização das nossas riquezas através da Petrobrás e, mal começa esta a funcionar, a onda de agitação se avoluma”. Nota ainda que “contra a justiça da revisão do salário mínimo se desencadearam os ódios”.

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Também se reproduzem discursos e práticas das tropas da oposição. São elas que incentivam e desferem os golpes de 1954, 1964 e 2016 contra os governos que, bem ou mal, colocaram os pobres no orçamento. O PSDB de 2016 tornou-se uma espécie de clone da UDN golpista dos anos 1950 e 1960.

Não custa recordar o desejo expresso de Fernando Henrique Cardoso de “sepultar a Era Vargas”, o que seria a grande missão de seu mandato. Por ironia, é o PSDB, pelas escolhas de líderes como FHC e outros, que parece estar à beira da cova.  

Todo mundo conhece a frase famosa de Carlos Lacerda, inimigo número um de Getúlio e golpista raiz. Quando Getúlio rompia seu ostracismo em São Borja para disputar a presidência em 1950, Lacerda avisou: “Getúlio não deve ser candidato, se for candidato não deve ser eleito, se for eleito, não deve tomar posse, se tomar posse não pode governar”. Getúlio venceu e não teve um dia de trégua.

Os empresários bolsonaristas de 2022 ecoam o final da frase de Lacerda. Para os golpistas do Whatsapp também é preciso golpear quem não seja o seu crush. Parece que a História gira sobre si mesma repetindo, com outros nomes, a confrontação das mesmas forças. 

Para aqueles que detém o mando e o comando sempre há alguém que não pode ser candidato, se candidato não pode ser eleito e se eleito não pode governar.

Edição: Glauco Faria