As violências estruturais e estruturantes do Brasil demandam um trabalho de desconstrução cotidiana
José Carlos Garcia
Na sessão do dia 08 de agosto, a Ministra do Supremo Tribunal Federal – STF, Carmen Lúcia, tentava pautar uma questão de ordem sobre determinado processo no plenário daquele Tribunal. Segundo divulgado por vários órgãos de imprensa, de que aponto dois exemplos aqui e aqui, ela passou vinte longos minutos tentando fazer-se ouvir, tempo durante o qual foi interrompida por colegas Ministros da Corte, até que, afinal, apresentou seu relatório e voto. Diga-se: sendo a relatora, ela, por definição, não interrompia ninguém, era exata, precisamente o seu momento de falar. Era ela quem vinha sendo indevidamente interrompida.
Não foi a primeira nem será, infelizmente suponho, a última vez que isso ocorrerá: repetiu-se outras vezes, como se pode constatar facilmente em qualquer busca na internet. Cito outros dois exemplos aqui, agora envolvendo a única outra mulher do Tribunal, a Ministra Rosa Weber: uma em 12/05/2017 e outra em 05/04/2018. No primeiro destes casos, a Ministra Carmen Lúcia, que presidia o Tribunal à época, ao defender o direito da Ministra Rosa Weber falar na hora em que o Regimento e a Lei dizem que ela pode e deve falar, menciona estudo segundo o qual, nas Cortes Constitucionais do mundo em que há mulheres dentre as juízas, elas são interrompidas, em média, dezoito vezes mais que seus colegas homens. E arremata, com humor, narrando uma conversa sua com a Ministra da Suprema Corte Americana, Sonia Sotomayor, ao lhe dizer que o mesmo se passava nos EUA, e em seguida indagar à Ministra Carmen Lúcia como era a situação no Brasil. A Ministra Carmen, respondendo à colega estadunidense, disse que aqui é totalmente diferente: “como eles não nos deixam falar, nunca nos interrompem”, numa transcrição não literal, mas que pode ser conferida diretamente no vídeo constante do link acima.
A prática de que sistematicamente são vítimas as duas mulheres mais poderosas do Judiciário brasileiro, assim como suas congêneres em quase todos os países do mundo pelo menos dezoito vezes mais que os homens na mesma posição, chama-se “manterrupting”, um neologismo em inglês que define a interrupção desnecessária de mulheres por homens. Confesso que não gosto do uso indiscriminado e algo abusivo do inglês no Brasil, mas abro aqui uma exceção, dada a difusão dos termos para identificar estas situações hoje em dia. Ao lado de outros neologismos de língua inglesa, como “mansplaining” (ação do homem que fala de forma condescendente com uma mulher, explicando-lhe o óbvio, supondo que ela saiba menos do que ele sobre o tema em discussão) ou “gaslighting” (tipo de abuso psicológico consistente na manipulação de informações até que a vítima, mulher, passe a duvidar de sua percepção da realidade), estas definições procuram auxiliar na identificação de comportamentos machistas que diminuem, oprimem ou distorcem a posição da mulher, tanto na esfera privada quanto, como vimos, na esfera pública.
Que o Brasil é um país profundamente machista, todos sabemos e o apontam claramente os números. Basta considerarmos que nada menos que 97% das mulheres já foram vítimas de assédio em meios de transporte no país! Três mulheres registram denúncias por crime de perseguição, previsto no art. 147-A do Código Penal, a cada hora no Brasil. No ano passado, foram 27.722 casos. O Brasil é o quinto país que mais mata mulheres no mundo. No ano passado, em média, uma mulher foi morta no Brasil a cada 7 horas, e uma estuprada a cada 10 minutos! Todas as mulheres podem ser vítimas de feminicídio, mas as pretas sofrem mais violência do que as brancas: segundo o IBGE, no domicílio, o número de mulheres pardas ou pretas assassinadas era quase 35% maior que o de mulheres brancas; fora de casa, 121,7% maior. Ainda segundo aquele Instituto, em 2018, o número de mulheres assassinadas em casa foi quase três vezes maior do que o de homens, no mesmo período (30,4% contra apenas 11,2%); em lares com crianças pequenas, mulheres têm menor nível de ocupação que homens, decorrência direta da ideia de que seja principalmente delas a obrigação de cuidados com os filhos; talvez pelo mesmo motivo, com filhos pequenos o número de mulheres em trabalho parcial é quase o dobro do de homens; elas gastam, em média, quase o dobro do tempo em cuidados ou afazeres domésticos que os homens; mesmo com maior instrução média que eles, elas ocupam menos de 40% dos cargos gerenciais, e recebem pouco mais de 75% do salário masculino para as mesmas funções; apenas 14,8% dos deputados federais do país são mulheres, 16% dos vereadores, 7% dos ministros de Estado.
O que é particularmente curioso no caso da nossa Suprema Corte, e faz com que este tema ganhe destaque nesta coluna, é que o Judiciário brasileiro tem, nos últimos anos, investido com seriedade no enfrentamento das questões envolvendo violações a direitos humanos das mulheres no país e na superação de muitas destas práticas dentro da Instituição, tanto envolvendo juízas de todas as instâncias, quanto partes e advogadas. E o tem feito tanto por boas medidas de iniciativa própria, quanto por pressão de mecanismos internacionais, como a Corte Interamericana de Direitos Humanos – CIDH, que condenou o Brasil, em setembro de 2021, por práticas machistas no julgamento do assassinato de Márcia Barbosa de Souza pelo deputado estadual da Paraíba Aércio Pereira de Lima. De acordo com a sentença da CIDH, a atuação do Judiciário brasileiro expôs a própria vítima e sua dignidade, bem como a de sua família, a estereótipos de gênero e mecanismos discriminatórios que comprometeram a correção e a conclusão do julgamento.
Em setembro de 2018, o Conselho Nacional de Justiça – CNJ aprovou as Resoluções 254 e 255, referentes ao enfrentamento à violência contra as mulheres e ao incentivo à participação feminina no Poder Judiciário, tornando evidente sua disposição institucional tanto em atender a demandas externas pela crescente visibilidade dos casos de violência contra a mulher, quanto de corrigir distorções institucionais internas que limitavam, dificultavam ou impediam a maior participação de mulheres nas várias esferas internas do Poder Judiciário, inclusive quanto a acesso a tribunais e a seus cargos de direção. Em 15/02/2022, o Conselho aprovou a Recomendação n.º 128, que indicava a adoção, por juízes e tribunais de todo o país, do Protocolo para Julgamento com Perspectiva de Gênero, no qual conceitos como “manterrupting”, “mansplining” e “gaslighting”, antes referidos, são explicados e contextualizados. Com mais de 130 páginas, fruto de meses de esforço e elaboração de um Grupo de Trabalho de 21 representantes de diferentes ramos da Justiça e do mundo acadêmico, ele é um guia detalhado sobre tomar em consideração a questão de gênero, não só de forma isolada, mas também correlacionada com outras formas de subordinação ou opressão baseadas em outros marcadores sociais, como raça, classe ou orientação sexual, por exemplo (o que se chama interseccionalidade): apresenta conceitos básicos, elabora um passo-a-passo na abordagem e tratamento de partes e processos e identifica questões específicas de gênero em cada ramo do Judiciário.
Todas estas ações, programas, iniciativas, inserem-se no bojo daquilo que determina a Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra a Mulher, de 1979, conhecida pela sua sigla em inglês, CEDAW. O Brasil aderiu a esta Convenção Internacional em março de 1981, e ela foi internalizada ao nosso direito em dois momentos: pelo Decreto Legislativo 93, de 14/11/1983, com algumas reservas ao texto geral, posteriormente revogado pelo Decreto Legislativo 26, de 22/06/1994, que eliminou as antigas reservas, normas através das quais o Congresso Nacional aprovou a Convenção. Sua promulgação se deu pelo Decreto 4.377, de 13/09/2002, que o contempla já sem as reservas mencionadas.
Este breve relato pretende demonstrar como são profundas e antigas as raízes do machismo e de várias outras discriminações, em especial o racismo e a LGBTfobia, em uma sociedade violenta como a nossa. Mesmo com a adesão do país a convenções internacionais, a internalização das suas normas, a aprovação de inúmeras medidas concretas para reduzir o machismo e suas práticas de exclusão – e não nego, de forma alguma, que estas iniciativas sejam fundamentais e estejam produzindo resultados – ainda convivemos com um grau de preconceito em que as duas Ministras do Supremo Tribunal Federal são constantemente interrompidas por seus pares, pares estes que, sem sombra de dúvida, votarão, senão em sua totalidade, ao menos em sua ampla maioria, aplicando e defendendo as normas antidiscriminatórias que denunciam e reprimem condutas como estas. As violências estruturais e estruturantes que fazem do Brasil um país brutalmente violento demandam um trabalho constante, permanente, consistente de desconstrução cotidiana. Sou um homem brasileiro, branco, heterossexual, cisgênero, do sul do país – quantas vezes não terei agido, ainda que inconscientemente, de modo a reforçar estes mecanismos de hierarquia informal e de discriminação estrutural?
Não defendo que a resposta a estes dramas que afetam, emocional e fisicamente, milhões de brasileiras e brasileiros seja o mero voluntarismo individual, a perseguição exclusiva, em nossas vidas pessoais, de uma desconstrução de nós mesmos como veículos destas opressões, que até podemos negar racionalmente. O que digo é, diversamente, que precisamos entender estas questões em sua profundidade e complexidade, dar-lhe visibilidade, dar voz às vítimas para que não sejam vitimizadas, e sim para permitir-lhes o resgate da dignidade e da potência; precisamos articular medidas institucionais e legais com debate e modificação de cultura: o que não é mostrado nunca será percebido como problema; precisamos entender que o machismo não afeta igualmente as múltiplas mulheres do mundo real: se até mulheres brancas, cultas, com boa condição econômica e de educação formal, juízas da mais alta Corte do país, são interrompidas em seus votos, o que se passa com os milhões de mulheres pretas, pobres, mães solo, pelas capitais e interiores do Brasil? A violência contra a mulher atinge o topo da pirâmide social, mas atinge mais a sua base, como vimos nos dados trazidos a este texto.
Dar tratamento a esta questão é fazer dela um dos centros da ação política no país, em todo o espectro político, mas reconhecendo que “mulheres” não são uma abstração conceitual ideal, e sim pessoas concretas, diferentes entre si, com demandas distintas e eventualmente contraditórias (pense-se na mulher branca de classe média alta que reduz o tempo dedicado ao trabalho doméstico desigualmente dividido entre gêneros pela sua transferência a outra mulher, normalmente preta e pobre, remunerada para isso, dobrando o tempo que haverá de dedicar ao trabalho doméstico, na sua casa e na casa da patroa).
Apenas lutando política e socialmente para concretização constitucional da igualdade entre homens e mulheres para todas as mulheres, tarefa tanto de mulheres quanto de homens, poremos fim às múltiplas formas de agressão contra elas, seja a interrupção indevida ou a condescendência como se fossem pessoas estúpidas, seja o abuso emocional ou psicológico, seja a agressão verbal ou física dentro ou fora de casa, sejam ainda o silenciamento, o estupro, o feminicídio. Mulheres e homens somente estarão livres das amarras sinistras de uma sociedade misógina e patriarcal quando todas as mulheres tiverem vez e voz e não forem mortas por buscarem exercer esse direito elementar de ter direitos. Só assim poderemos concretizar a fala da Ministra Carmen Lúcia, relatora da Ação Direta de Constitucionalidade 4815, sobre liberdade de expressão, em junho de 2015, quando resgatou o ditado popular, algo infantil: “cala a boca já morreu!”
Que participemos, como homens, ao lado das mulheres nesta luta, e que sejamos capazes de ouvir suas vozes e reconhecê-las como são, em toda sua multiplicidade e complexidade, como pessoas integrais com absoluta igualdade de direitos, não apenas nos códigos ou nas decisões judiciais, mas no cotidiano de uma vida plena.
*José Carlos Garcia é Doutor em Direito Constitucional pela PUC-Rio, juiz federal, membro da Associação Brasileira de Juristas pela Democracia (ABJD) e da Associação Juízes para a Democracia (AJD).
**A coluna Avesso do Direito mostra uma visão mais ampla do Direito e suas relações com a vida, a democracia e a pluralidade. É escrita pelos juízes federais José Carlos Garcia e Cláudia Maria Dadico, ambos membros da Associação Brasileira de Juristas pela Democracia (ABJD). Leia outros textos.
***Este é um artigo de opinião. A visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato.
Edição: Glauco Faria