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A santa barroca

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Deu o Alfredo com a santa no colo em tudo quanto jornal e no noticiário da televisão - Wikimedia Commons
O Alfredo logo se lembrou de onde tinha uma imagem daquelas, mas não falou nada

Alfredo, um caminhoneiro que viajava por cidades e povoados antigos de Minas Gerais, recebeu de um sobrinho que tinha um antiquário em São Paulo, a função de comprar uma santa barroca, e ganharia 50 mil cruzeiros para isso, uma boa grana na época.

Mais do que ganhava por mês. Ele perguntou:

— Que diabo de santa é essa?

— Não é nome, é um estilo — explicou Agnaldo, o sobrinho, mostrando fotos de imagens feitas pelo Aleijadinho e outros escultores do século XVIII.

O Alfredo logo se lembrou de onde tinha uma imagem daquelas, mas não falou nada.

Numa viagem para fazer uma entrega em São Paulo, passou por um povoado antigo perto da sua cidade, parou o caminhão na porta da igreja, entrou, dirigiu-se direto ao altar em que tinha santa do jeitinho que o Agnaldo queria, pegou a imagem e saiu com ela debaixo do braço, na maior sem-cerimônia, ante o olhar assustado de meia dúzia de mulheres que estavam lá rezando.

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Levou a imagem ao sobrinho, foi pegar uma carga e deu de cara com a polícia. As mulheres da igreja tinham ido à cidade e falado com o dono do caminhão para saber o destino do Alfredo. Dali, tendo o endereço do local onde ele deveria buscar a carga, correram para a delegacia, que se comunicou com a polícia de São Paulo.

Como o sobrinho do Alfredo tinha um tio que era político da Arena, o partido da ditadura, escaparam de ser presos. Prestaram depoimento, soltaram uma grana para alguém e foram liberados.

O problema é que isso aconteceu num dia que não havia nada pra noticiar, e a delegacia onde foram depor ficou cheia de jornalistas. Deu o Alfredo com a santa no colo em tudo quanto jornal e no noticiário da televisão.

Na terra do Alfredo (não vou dizer qual é para não pegar mal) toda hora as crianças gritavam:

— Mãe, vem ver o Alfredo na televisão.

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Ele voltou pra sua terra e só via sorrisos irônicos. Muita gente vinha perguntar da santa. E ainda apareceu mais uma vez no noticiário da televisão. Ficou indignado. Subiu num banco do jardim e fez um discurso de protesto:

— O governo rouba, ninguém fala nada; o prefeito rouba, ninguém fala nada; os comerciantes roubam no peso e nas contas e ninguém fala nada. Eu, só porque roubei uma desgraçada duma santa, tenho que aguentar isso? Vão vocês todos pro inferno e levem a desgraçada da santa!

Amanheceu o dia seguinte com a mudança no caminhão.

 

*Mouzar Benedito é escritor, geógrafo e contador de causos. Leia outros textos

**Este é um artigo de opinião. A visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato.

Edição: Douglas Matos