Paraíba

Coluna

Para não nos calarmos frente às inverdades

Ato contra nomeação de reitor/interventor da UFPB em 2020. - Foto: Nathalia Williany/A UFPB SOMOS NÓS
Enquanto retira os recursos da universidade pública o governo externa seu propósito: a privatização

Por Rosivaldo Gomes de Sá Sobrinho*
 

É de conhecimento público, que o governo federal e seus ministros da educação, nos últimos anos, têm ameaçado universidade e a continuidade da educação pública e gratuita. Vinicius Konchinski, em reportagem do Brasil de Fato, em fevereiro de 2022, mostrou que o orçamento das universidades para esse ano era 32% menor que em 2015. Em maio desse mesmo ano, foi reportado em diversos jornais o corte de 3,2 bilhões do orçamento do MEC, situação que compromete o ensino e a pesquisa científica, levando a universidade ao estrangulamento financeiro. 

Enquanto retira os recursos da universidade pública o governo externa seu verdadeiro propósito: a privatização. Fato constatado pela proposição da PEC 206, de 20192, que visa instituir a cobrança de mensalidade nas universidades federais.  

Em meio à sua política de desconstrução da universidade, o Governo Federal desrespeitou os processos democráticos para a escolha dos reitores realizados pelos centros de ensino, e, à sua livre escolha, deu posse a pessoas coniventes com sua política. Assim, vimos ser empossado para o cargo na UFPB, uma pessoa reprovada pela comunidade acadêmica. O empossado obteve menos de 5% dos votos na consulta pública e 0% (zero por cento) dos votos do Conselho Universitário.  

Por tais fatos consideramos refletir sobre essa imposição como parte do processo que representa retrocesso político; ameaça às instituições democráticas, à integridade e à permanência da universidade pública brasileira.   

O “reitor” empossado se fez presente na colação de grau dos formandos do Centro de Ciências Agrárias, campus de Areia-PB, no dia 08 de julho de 2022, e, proferiu um discurso falando em respeito e sorte. 

Eu na qualidade de docente, ser pensante, ouvia e avaliava aquelas palavras, mera retórica. Cheguei facilmente a essa conclusão. Um discurso, no mínimo, estranho.  

Falava sobre respeito a pessoa que ocupa o lugar de “reitor” desrespeitando a manifestação dos votos dos seus pares e de toda comunidade universitária.   

Se aqui não consigo ver respeito, quem sabe, não posso afirmar, o orador considere sorte ter sido imposto reitor. Sorte é algo que acontece ao acaso, sob a interferência de forças ocultas, dificilmente comprovadas pelo atributo da razão.  Não, os fatos que o levaram ao cargo não podem ser compreendidos como sorte. Há como adjetivar essa atitude, seriam dezenas de substantivos capazes de descrever e todos que consigo imaginar nesse momento trazem prefixos de negação. 

Ainda no discurso ele tentou justificar sua posição a partir de sua origem social pobre, de comunidade periférica que chegou ao título de doutor.  

Eu, afro-brasileiro, oriundo da população em situação de pobreza, conhecedor do medo da fome; testemunha da violência social e policial que ceifa vidas jovens de negros/as  pobres do nosso país; amigos, parentes, conhecidos, filhos de amigos que não chegaram à idade adulta, não admito avaliar tais situações por mera questão de sorte ou da falta dela. Não é justo considerar fator de sorte sobreviver. A vida é um direito social inalienável com garantia constitucional.  

Reconheço a imprescindibilidade da educação, do ensino público, gratuito e de qualidade, da estrutura familiar, do acesso a uma educação cidadã, com princípios como amor empatia, ética e pensamento crítico. Hoje, também professor, me posiciono em defesa da universidade pública e gratuita como fundamental para o enfrentamento da pobreza e da desigualdade. Defendo o acesso às universidades pela política de cotas, como medida de reparação histórica às pessoas que descendem dos indígenas e dos africanos, parcela da população comprovadamente abandonada à própria sorte, como bem definiu Florestan Fernandes, ao constatar o nível de exclusão social do negro na sociedade brasileira. 

Diferente do orador “reitor”, posso afirmar que ainda são necessários muitos enfrentamentos contra o racismo e os estigmas atribuídos ao negro por uma a sociedade racista e excludente, parte dessa sociedade representada pelo discurso do ódio e ações do atual desgoverno.  

No seu discurso, o “reitor” quer justificar a sua posição, ao falar da sua pretérita condição de oprimido. Mas se esquece o que é ser oprimido, quando, doutor, reitor empossado pelo desgoverno Federal, desrespeita o direito e impossibilita um jovem a acessar a universidade pela política de cotas.3 Por quê?  Por que ele, o “reitor”, se julga estar na mesma situação social do jovem?  Destaque: esse professor “reitor” é um doutor em psicologia; talvez esteja faltando empatia no seu currículo. 

No seu discurso, após tantos disparates já proferidos, nos brindou com a afirmação de nunca ter precisado de apoio de políticos para chegar onde chegou. Basta!  Como era festa, essa foi a cereja do bolo. A quem ele deseja iludir? A ele mesmo? 

Como assim? Será que já esqueceu que o cargo que ocupa não foi conquistado pela escolha de seus pares? Que sua posse resulta dos beneplácitos do presidente da república cujo desgoverno atenta contra a educação e a universidade pública? Se isso não for dádiva, o que será? Falando em dádiva lembro de Marcel Mauss, segundo o qual a dádiva recebida gera obrigação de reciprocidade. Podemos compreender tal obrigação pela inércia do reitorado frente à política de depauperação da universidade pública. 

Ouvindo tais dislates, na condição de professor que opta pelo pensamento crítico, não me permito o direito de não contestar. Naquele momento resolvi me retirar da cerimônia.  

Por silenciosa que tenha sido a minha retirada, não fora imperceptível. Para sair do ambiente, precisei percorrer toda extensão que separa o palco da entrada do prédio, na parte superior. Percorri os degraus passando pelo corredor esquerdo em meio ao público, sem me preocupar com o pensamento alheio. Assim o fiz com a intensão de demonstrar meu desacordo com essa cruel realidade.   

Eu, um afro-brasileiro, descendente daqueles que sobreviveram à travessia transatlântica e à toda forma de opressão imposta pela colonização, em respeito às gerações que me antecederam, não cheguei aqui para ser conivente com a injustiça, com aleivosia e opressão. 

Fiz minha ação de repúdio e tantas vezes a farei. Tantas quanto forem necessárias, contra as formas de manipulação que querem usurpar os direitos de cidadania e a autonomia das universidades públicas brasileiras. Continuarei protestando e dizendo não. Não compactuo! 

 Finalizo minha reflexão recorrendo à ideia apresentada no discurso da professora paraninfa, “não julgue as pessoas por aquilo que elas dizem, elas podem dizer o que quiserem. Julgue-as por suas atitudes”.  

Eu me retirei em forma protesto.  Virei as costas e me dei o direito de sair, contrário a uma retórica desprovida de compromisso com a verdade. 

Notas:

1  Ver reportagens  https://www.brasildefato.com.br/2022/02/16/universidades-federais-perdem-12-do-orcamento-durante-governo-bolsonaro). 

https://www1.folha.uol.com.br/educacao/2022/05/governo-bolsonaro-corta-r-32-bilhoes-do-orcamento-do-mec.shtml 

2 https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao?idProposicao=2231221 

https://g1.globo.com/pb/paraiba/noticia/2022/04/25/mpf-ajuiza-acao-para-que-ufpb-desconsidere-aprovacao-do-reitor-da-instituicao-pelo-sistema-de-cotas.ghtml 

https://www.correiobraziliense.com.br/euestudante/ensino-superior/2022/03/4989839-reitor-da-ufpb-e-aprovado-em-curso-superior-por-meio-de-cotas.html 

 

Para saber mais 

Fernandes, Florestan. A integração do negro na sociedade de classes. Vol, I. São Paulo: Globo, 2008. 

MAUSS, Marcel. Sociologia e Antropologia. São Paulo: Cosac Naify, 2003. 

PEC 206/2019. Proposta e Emenda Constitucional. Disponível em: https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao?idProposicao=2231221 

 

*Professor do CCA/UFPB e pesquisador do NEABI/UFPB

Edição: Maria Franco