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Espionagem vira obsessão no governo Bolsonaro; relembre casos criticados por entidades da área

Gestão acumula pelo menos quatro casos de compra ou negociação com plataformas e empresas ligadas a escândalos

Brasil de Fato | Brasília (DF) |
Governo Bolsonaro tem diversos episódios de conexão com empresas e programas apontados como "espiões" - Isaac Nóbrega/PR

A compra de programas de espionagem é uma obsessão no governo do presidente Jair Bolsonaro (PL). Depois de três anos e meio de mandato, a gestão federal acumula uma série de casos de negociações com empresa e plataformas ligadas a escândalos internacionais de espionagem.

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A aquisição dos programas levanta preocupações sobre o possível uso de apps espiões em campanhas eleitorais ou contra opositores, embora o governo afirme que adquire softwares como esses para facilitar a busca e prisão de criminosos.

O Brasil de Fato relembra, nesta reportagem, quatro episódios que foram apontados por entidades do campo da privacidade como "problemáticos". Entre eles, estão casos com a participação das Forças Armadas, do Ministério da Justiça e até de um dos filhos do presidente da República.

Exército contrata empresa israelense CySource

Na semana passada, o Tribunal de Contas da União (TCU) deu aval a um acordo de cooperação entre o Comando de Defesa Cibernética do Exército e a empresa de cibersegurança israelense CySource. Em maio, o Ministério Público Federal (MPF) considerou o contrato como uma estratégia para ameaçar o processo eleitoral e tentou barrá-lo.

Mas, em decisão publicada no último dia 27, a Primeira Câmara do TCU decidiu, por unanimidade, considerar o processo do MPF improcedente, encerrar o caso e arquivar os autos. A íntegra do acórdão está disponível na consulta processual eletrônica da Corte. Clique aqui para fazer o download.

O sub-procurador geral Lucas Rocha Furtado, do MPF, apesar de ter ingressado com a ação junto à Corte de Contas, não atuou no julgamento, o que abriu caminho para o arquivamento. A reportagem questionou o gabinete de Furtado sobre o tema, mas não houve resposta.

:: General que questiona eleições contratou empresa israelense de ex-chefe de TI de Bolsonaro ::

O caso, revelado com exclusividade pelo Brasil de Fato em maio deste ano, foi apreciado pela Corte após Furtado apontar que o acordo tem indícios de desvio de finalidade e que pode colocar em risco as eleições de outubro.

Ministério da Justiça contrata plataforma Harpia

Em maio, o TCU também autorizou a retomada de um contrato do ministério da Justiça e Segurança Pública para a aquisição de uma solução de inteligência em fontes abertas, mídias sociais, deep e dark web. O ministro Bruno Dantas, relator do processo no TCU, derrubou uma medida cautelar de 2021 e autorizou a retomada do contrato com a adoção de algumas medidas, entre elas fazer constar no contrato as funcionalidades de segurança e a auditabilidade do sistema.

O processo teve início com ação apresentada pelas organizações Conectas Direitos Humanos, Instituto Igarapé, Instituto Sou Da Paz e Transparência Internacional. Em janeiro, o TCU manteve uma decisão anterior, de novembro de 2021, em que suspendeu o pregão eletrônico que contratou o sistema da Harpia Tech.

As entidades apontaram que "havia irregularidades graves na licitação, entre elas a própria ilegalidade da contratação de um sistema capaz de monitorar e perfilar cidadãos sem qualquer justificativa prévia, a ausência de mecanismos de controle e fiscalização e a própria modalidade de licitação adotada, absolutamente inadequada para o tipo de serviço pretendido".

De acordo com as ONGs, apesar de ser uma tecnologia distinta da Pegasus – software que permite a invasão de dispositivos celulares e computadores –, a plataforma comercializada pela Harpia Tech também é "problemática". Um dos pontos questionados é a contratação do sistema pela Secretaria de Operações Integradas (Seopi) da Secretaria Nacional de Segurança Pública (Senasp), vinculada ao Ministério da Justiça e Segurança Pública. Desde sua criação, em 2019, o órgão funciona como "braço de inteligência do Ministério da Justiça".

Defesa faz "GT" com empresa do Darkmatter

Em junho, o Brasil de Fato mostrou que o deputado federal Eduardo Bolsonaro (PL-SP) participou de uma reunião com integrantes do governo federal e representantes do Grupo Edge, empresa estatal dos Emirados Árabes Unidos (EAU) envolvida em um escândalo internacional de espionagem. O encontro ocorreu na sede da empresa, em Abu Dhabi, no último dia 26 de maio.

O filho do presidente integrou uma delegação diplomática, militar e comercial do Brasil na visita à empresa. A reunião também teve a presença do secretário de Assuntos Estratégicos da Presidência, Flávio Rocha, e do secretário de Produtos de Defesa do Ministério da Defesa, Marcos Degaut Pontes, entre outras autoridades.

:: Exclusivo: Eduardo Bolsonaro se reuniu com empresa de programa espião nos Emirados Árabes ::

Parceiro do Ministério da Defesa, o Grupo Edge é apontado como dono de sistemas de espionagem, como BeamTrail e Digital14, capazes de invadir redes e sistemas. O conglomerado estatal dos Emirados Árabes Unidos também detém a tecnologia de espionagem DarkMatter, utilizada por ditaduras para monitorar opositores.

A plataforma foi adotada pelos regimes sauditas e dos Emirados Árabes. A empresa surgiu como uma tentativa de prestar serviços para o governo local, que temia os efeitos da Primavera Árabe. Para isso, passou a monitorar jornalistas, políticos e defensores de direitos humanos.

A tecnologia DarkMatter foi desenvolvida por ex-agentes da CIA (agência central de inteligência dos EUA) e militares de inteligência, além de ex-programadores da Unidade 8200, força de hackers de elite vinculada ao exército de Israel. O DarkMatter passou a ser temido após diversos veículos de comunicação denunciarem, a partir de 2016, que a empresa estava servindo de fachada para o grupo de espionagem secreta dos Emirados Árabes, chamado Project Raven, que mirava ativistas e jornalistas.

A existência de um grupo de trabalho da empresa com o Ministério da Defesa foi revelada pelo site ComeAnanás, depois que o governo divulgou uma portaria, no Diário Oficial da União, mostrando que integrantes da pasta usaram uma reunião com a empresa dos Emirados como justificativa para uma viagem ao país, logo após integrarem a comitiva presidencial na Rússia.

O governo federal decretou sigilo nas atas e listas de presenças da reunião do GT do Ministério da Defesa com o Grupo Edge. A classificação das informações como sigilosas consta em reposta a um pedido de acesso à informação feito pelo Brasil de Fato.

"Os temas tratados nessas reuniões foram qualificados de alta sensibilidade e acesso restrito, a fim de evitar prejuízos às negociações e às cooperações nacionais na área de defesa, em andamento, conduzidas no âmbito desse GT", diz um dos trechos da reposta do Ministério da Defesa, protocolada no dia 31 de maio.

A pasta alega que a decisão é resguardada por um inciso da Lei de Acesso à Informação (LAI) que permite o sigilo de informações que tenham potencial de "prejudicar ou pôr em risco a condução de negociações ou as relações internacionais do país ou as que tenham sido fornecidas em caráter sigiloso por outros Estados e organismos internacionais".

Militares compram sistema Cellebrite

O Comando de Defesa Cibernética do Exército, liderado pelo general Heber Garcia Portella, representantes das Forças Armadas junto à Comissão de transparência do Tribunal Superior Eleitoral (TSE), comprou pela primeira vez equipamentos para hackear telefones celulares, extrair conteúdo de nuvens e e acessar dados de redes sociais, como Twitter, Facebook e Instagram.

Segundo informações de reportagem do jornal Folha de S.Paulo, a compra inédita nas Forças Armadas foi feita com dispensa de licitação no fim de 2021. Entidades do campo da privacidade e da transparência apontam preocupação com o caso, mesmo que não seja ligado a empresas ou programas conectados a casos de espionagem.

Na época da compra, o Exército estava sob o comando do general Paulo Sérgio Nogueira de Oliveira, atual ministro da Defesa e um dos principais cúmplices das teorias da conspiração de Jair Bolsonaro (PL) sobre fraudes em urnas eletrônicas.

"A justificativa para a aquisição de uma solução para perícia em dispositivos móveis é o histórico de demandas apresentadas ao ComDCiber [Comando de Defesa Cibernética] nos últimos três anos", diz estudo técnico preliminar feito para justificar a compra. Ainda segundo o documento, "não é possível detalhar as atividades devido ao caráter sigiloso, todavia a existência de uma solução seria suficiente para viabilizar o trabalho realizado neste centro".

A compra do sofware Cellebrite UFED foi feita junto à empresa TechBiz Forense Digital, única fornecedora da ferramenta no Brasil, por R$ 528 mil para uso entre 28 de dezembro de 2021 a 27 de dezembro de 2024.

Edição: Nicolau Soares