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Direito, democracia e reforma agrária: os 10 anos de formatura da Turma Evandro Lins e Silva

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TURMA EVANDRO LINS E SILVA
Superando ataques que pretendiam impedir a existência da turma Evandro Lins e Silva, a colação de grau aconteceu na simbólica data de 11 de agosto de 2012, dia do Direito - SECOM/UFG
Experiência já se multiplicou em outras cinco turmas para formar advogadas populares camponesas

Euzamara de Carvalho¹ e José do Carmo Alves Siqueira²

O curso formal de Direito, na perspectiva realizadora dos direitos humanos e da garantia de acesso universal à educação prometida pela Constituição brasileira de 1988, voltado para populações do campo, é concretizada, a partir do ano de 2007, com a pioneira Turma Especial de Graduação em Direito para Beneficiários/as da Reforma Agrária e Agricultores/as Familiares Tradicionais.

A realização dessa experiência foi fruto de uma decidida e corajosa parceria entre a Universidade Federal de Goiás – UFG, o Pronera/INCRA e movimentos sociais e sindicais do Campo (Via Campesina e Contag). A turma, que escolheu homenagear o jurista Evandro Lins e Silva, adotando o seu nome, congregou 60 estudantes provenientes de 19 unidades federativas do Brasil.

Superando vários e agressivos ataques que pretendiam impedir a existência da turma, a solenidade colação de grau aconteceu na simbólica data de 11 de agosto de 2012, dia do Direito, ressignificado com esse ato vitorioso da luta pela democratização do direito à educação.

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Primeiro, foi necessário que a sociedade civil organizada conquistasse a educação como um direito universal de todos/as e dever do Estado (Constituição, art. 205). Depois, foi necessário que movimentos sociais do campo lutassem contra a insuficiência do texto, mesmo daquele expresso na Constituição, e para que o “direito como efetividade” à educação jurídica pudesse se concretizar, com foco na educação do campo.

Trata-se de um caso concreto que confirma que o direito não se materializa somente pela sua declaração na forma da lei, mas, sim, pela demanda organizada e com o exercício do legítimo direito de reivindicação pelos seus interessados. Isso possibilita refletir que a simples positivação de direitos não garante sua aplicação e, consequentemente, os avanços que se almejam a partir de sua incorporação à própria Constituição.

Nesse sentido, trazemos a afirmação de José Geraldo de Sousa Junior: “vale lembrar que os movimentos sociais nunca deixaram de protestar e perceber a rua como espaço de reivindicação, porque já tinham a análise de que a positivação não lhes foi sinônimo de direitos efetivados”.

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No dia 17 de agosto de 2007, a aula inaugural da primeira Turma Especial de Graduação em Direito para Beneficiários/as da Reforma Agrária e Agricultores/as Familiares Tradicionais foi proferida pelo então Ministro do Supremo Tribunal Federal, Eros Roberto Grau, no Teatro São Joaquim, na cidade de Goiás. Um marco na história da universidade pública brasileira, nos cursos jurídicos do País e na luta concreta por direitos das populações do campo.

Importante ressaltar os caminhos de acesso à Justiça que foram, historicamente, negados às populações do campo. As possibilidades de acessos à Justiça ainda são ineficientes para essas categorias sociais, principalmente diante de constantes demandas cotidianas – a exemplo da luta pela democratização da terra, pelo direito à educação do campo, à permanência e conquista dos territórios indígenas e quilombolas, ao bem viver dos povos do campo, das águas e das florestas em equilíbrio com os bens da natureza.

A proposta de uma turma de um curso regular de direito, em uma universidade pública, e sua realização provocaram diversas reações manifestadas por dirigentes de entidades classistas patronais (FIEG e FAEG), por atuações de integrantes do Ministério Público Federal e de um juiz federal (que decretou a extinção da turma), que se empenharam por interpretações não jurídicas para negarem o acesso ao ensino formal, à educação jurídica como um direito humano de trabalhadoras/es rurais, quilombolas, agricultores/as familiares. Desconsideravam, assim, as negações históricas de acesso à educação para as populações do campo.

A Turma Evandro Lins e Silva é a materialidade da concretização de direitos por meio das lutas dos movimentos sociais do campo numa sociedade que se afirma democrática. É, também, a demonstração de que o curso de direito e os vários possíveis exercícios de carreiras jurídicas de Estado não devem se limitar à “democracia meritocrática” constituída para a manutenção de desigualdades antidemocráticas.

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A intencionalidade na formação de militantes advogados/as, pesquisadores/as, defensoras/es de direitos humanos está relacionada à qualificação das demandas coletivas de direitos das populações do campo, como também à busca de um equilíbrio democrático das instituições públicas, de forma a romper com o controle elitista da estrutura estatal que não serve aos interesses das populações historicamente subalternizadas.

A experiência da Turma Evandro Lins e Silva já se multiplicou por outras cinco turmas (Universidade Estadual da Bahia - UNEB, Universidade Estadual de Feira de Santana/BA - UEFS, Universidade Federal do Paraná - UFR, Universidade Federal do Sul e Sudeste do Pará – Unifesspa, e uma segunda turma da UFG), com o objetivo de formar camponesas/es advogadas/os populares para atuarem proativamente e na defesa de direitos das populações do campo, das águas e das florestas.

Trata-se, como mencionado, de uma formação (educação jurídica) que engloba a luta concreta dos movimentos sociais pelo reconhecimento e pela garantia de direitos.

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A parir da perspectiva de recriar concepções e práticas de direitos humanos, olhando para o outro, como declara Richard Dagger, enquanto “potenciais autores de reivindicações” dotados de direitos humanos e em constante luta por seus direitos, podemos observar a consolidação dessa experiência diferenciada de formação de bacharéis e bacharelas em direito. Isso, porque essa experiência leva em conta as práticas de lutas e de resistências no campo. Trata-se de uma ação que integra um projeto maior de formação em direitos humanos por e para os povos do campo.

Fazemos memória dessa trajetória para celebrar a força de uma luta vitoriosa que contou com a solidariedade política e acadêmica das comunidades nacional e internacional que acreditam e defendem a democracia que se realiza, também, pelo efetivo exercício do direito ao direito. Podemos apontar esta ação afirmativa e formativa enquanto reveladora e recriadora de práticas de educação em direitos humanos, construtoras permanentes dos pilares da democracia que protege e precisa ser protegida por todos/as nós.

Edição: Rodrigo Chagas