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Sem-terra pode ser jurista?

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Os sem-terra tornaram-se juristas, e estão nas mais longínquas fronteiras desse país plantando, cultivando e colhendo o conteúdo verdadeiro da palavra Justiça - MST/Divulgação
Turma Evandro Lins e Silva reuniu militantes dos movimentos do campo de todas as regiões do país

Anderson Santos*

No dia 11 de agosto de 2022 se comemorará o Dia do Advogado e da Advogada, mas, para 57 bacharéis em direito, oriundos de acampamentos e assentamentos da reforma agrária, não será uma comemoração rotineira. Neste dia comemoraremos os 10 anos da Turma Evandro Lins e Silva, conhecida como turma especial para beneficiários da reforma agrária, que reuniu militantes de todas as regiões do país, ligados, diretamente, aos movimentos sociais do campo, sendo eles: Movimento dos trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), Comissão Pastoral da Terra (CPT), Confederação Nacional dos Trabalhadores na Agricultura (Contag), Federação dos Trabalhadores Rurais na Agricultura Familiar (Fetagri).

Iniciamos a graduação em Direito também no “Dia do Pendura” em 2007, com uma aula magna sobre Direito Posto e Direito Pressuposto, proferida pelo jurista e à época Ministro do Supremo Tribunal Federal, Eros Grau. Após 5 anos de muito trabalho duro e coletivo, concluímos a graduação em 2012, celebrando, justamente, no dia 11 de agosto a outorga do título de “Bacharéis em Direito” pela Universidade Federal de Goiás (UFG), Campus Cidade de Goiás.

Devido a isso, o próximo dia 11 não representará somente a comemoração do Dia dos Advogados e Advogadas. Representará, sobretudo, a concretização da ocupação do latifúndio do direito tradicional por pessoas do campo, de origem humilde, muitas delas a meu próprio exemplo, que sobreviveram às margens de rodovias debaixo da lona preta por décadas e que enfrentaram todas as dificuldades inimagináveis para chegarem onde estão hoje e marcaram, enquanto pioneiros dessa iniciativa, com o pé à esquerda, o início de uma transformação histórica, seja na academia, seja nos tribunais e seja nos movimentos que cada um, cada uma, continua defendendo e ajudando na luta pela transformação dessa sociedade excludente em uma sociedade menos desigual e mais fraterna.


Formatura da primeira turma de Direito/Pronera do Paraná / Wellington Lenon

A política de cotas inclusiva e aceita pela Universidade Federal de Goiás (UFG), e uma posição política crítica claramente assumida corajosamente por alguns de seus professores, proporcionou diretamente a esses movimentos sociais, e, indiretamente à sociedade envolvente um novo cenário. Também precisa-se apontar que este curso de Direito do Programa Nacional de Educação na Reforma Agrária (Pronera) enfrentou todas as barreiras, econômicas, sociais, políticas e jurídicas, pois o novo causa estranhamento. Exemplo disso, é a Ação Civil Pública movida pelo Ministério Público Federal para, liminarmente, suspender a continuação deste curso apoiado pelo Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra), sob alegação de que ... para que sem-terra quer estudar Direito. Não deveriam eles estudar questões relacionadas ao campo? A exemplo de agronomia, medicina veterinária etc.? Mas não conseguiu tampar o sorriso de nossos familiares quando recebemos o canudo da colação de grau!

Com isso, cumpre cumprimentar a todos companheiros e a todas as companheiras, tanto da Universidade Federal de Goiás (UFG), quanto do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra), em especial, o Programa Nacional de Educação na Reforma Agrária (Pronera), que enxergaram e acreditaram na educação enquanto ferramenta transformadora na luta de classes.

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Meu nome é Anderson Santos, tenho 34 anos, nasci no sul de Mato Grosso do Sul. Meus pais sempre foram trabalhadores rurais, a até serem assentados, sobreviveram de diárias em cortes de cana-de-açúcar, arrancadão de mandioca, colheita de algodão, etc, sempre super explorados nas grandes fazendas formadas a custo de sangue indígena nessa região. Mas nunca abandonaram o sonho de ter o seu próprio pedaço de terra para plantar e dar sustento aos seus filhos e nunca deixá-los abandonar o sonho de um dia ter uma profissão digna, cursar faculdade e poder lutar pelos que precisam. Para isso, resolveram acampar junto ao MST antes mesmo do meu nascimento e continuamos acampados até 1999, quando fomos contemplados com uma parcela rural no Projeto de Assentamento São Judas, em Rio Brilhante (MS), onde meus pais estão até hoje.

Ainda guardo várias lembranças de diversos locais que estabelecemos acampamento, a exemplo do Acampamento 8 de Março que ocupou a Fazenda Santo Antônio em 1997, formado pela reunião de diversos acampamentos da região veio a se tornar o maior acampamento sem-terra do Brasil, de onde fomos despejados e devolvidos ao nada, pois ninguém tinha para onde ir, ninguém tinha onde morar, ninguém tinha o que comer. A única solução foi acampar às margens da BR 163, entre os municípios de Naviraí e Itaquirai.

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O passado se torna futuro, segundo a cosmovisão Guarani Kaiowá, e essa frase nunca fez tanto sentido para mim até hoje, quando escrevo esse pequeno texto, o que também, de certa medida, se torna uma resposta ao "para que sem-terra quer estudar Direito"?

Quando criança fui, junto com minha família, despejado diversas vezes, às vezes acampávamos de madrugada em meio à geada e antes mesmo do almoço já tínhamos em nossa visão milhares de policiais militares em formação para nos tocar dali. Eu saí dessa situação, de despejado, para lutar hoje por pessoas nessa mesma situação, para que elas permaneçam em seus territórios.

Após a colação de grau em 11 de agosto de 2012, prestei o primeiro exame de ordem do ano de 2013 e fui aprovado, me tornando advogado, momento em que também já havia iniciado, no início do mesmo ano, meus trabalhos junto ao Conselho Indigenista Missionário Regional Mato Grosso do Sul (Cimi-MS), de lá pra cá venho defendendo assiduamente os movimentos indígenas em Mato Grosso do Sul.


Turma Nilce de Souza Magalhães formou 47 estudantes como bacharéis de Direito, na Universidade Federal do Paraná (UFPR), através do Pronera / Joka Madruga

Trabalho este que tenho a maior honra e me orgulho em poder realizar, em poder enfrentar a classe dominante deste Estado, conservadora, racista e preconceituosa, em poder chegar em cada aldeia indígena e ser sempre recebido com um largo sorriso, com um guaxiré, mesmo em momentos de conflitos, dor e algumas vezes até mesmo pela perda de mais um guerreiro.

Pela força do Mbaraká e sua ligação com os encantados, pude ancorar em meu currículo o ingresso com ação judicial a fim de suspender o “Leilão da Resistência” organizado pelos dois principais sindicatos rurais de MS para contratar milícia privada com fim único em atacar e expulsar as comunidades indígenas de seus acampamentos e ter vitória. Assessorar duas Comissões Parlamentares de Inquérito (CPI) na Assembleia Legislativa de MS, a primeira que visava investigar o CIMI atribuindo a ele o financiamento de retomadas indígenas na região, composto, essencialmente, por deputados ruralistas notoriamente parciais e com viés incriminador antes mesmo de sua instalação. Dessa CPI, obtivemos o arquivamento dos relatórios enviados ao MPF e ao MPE, por falta de qualquer indício das acusações e, por fim, a Justiça Federal em Campo Grande/MS, anulou o ato de instalação da supracitada CPI. Ao mesmo tempo, assessorar a CPI do Genocídio Indígena em MS onde podemos expor amplamente as graves violências de direitos humanos que os povos indígenas sofrem em Mato Grosso do Sul. E, recentemente, tive a honra de realizar sustentação oral no Supremo Tribunal Federal, no Recurso Extraordinário 1017365 que discute a aplicação da tese inconstitucional do marco temporal, representando a Aty Guasu (Grande Assembleia Guarani e Kaiowá) e, ainda, ter trecho de minha sustentação oral citada pelo Ministro Relator Edson Fachin em seu brilhante voto.

Além desses fatos que considero fundamentais para minha formação profissional, advogo nestes quase 10 anos em vários processos dominiais e possessórios movidos contra comunidades indígenas e até hoje, nenhuma dessas comunidades sofreram despejo, continuam na posse da terra, e agora com liminar de instância superior mantendo o exercício da posse, além de também advogar para o Movimento Sem Terra, meu berço, desde meu nascimento.

Esses sem-terra foram longe, e ainda têm muito caminho pela frente.

Não podia parar por aí, para poder exercer uma advocacia popular que esperam os movimentos sociais e o movimento indígena, me tornei especialista em Direito Agrário pela Universidade Federal de Goiás (UFG), 2019 – 2020; Mestre em Direito com concentração em Direitos Humanos pela Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (UFMS), 2019 – 2020; e tenho orgulho de ser o primeiro Doutorando da Turma Especial para Beneficiários da Reforma Agrária: Turma Evandro Lins e Silva, no programa de Pós-Graduação em Sociologia e Direito pela Universidade Federal Fluminense (UFF).

In memoriam a Dom Thomaz Balduíno, patrono da nossa turma que em seu discurso em 11 de agosto de 2012 disse: “esses egressos estão hoje a rasgar a venda da justiça e fazê-la enxergar a sociedade antes de aplicar o direito”, posso afirmar com a maior convicção que os egressos da Turma Especial não se tornaram meros “palpiteiros jurídicos” como acusavam alguns representantes da conservadora, violenta e inculta classe dominante desse país quando a turma iniciou. Os sem-terra tornaram-se juristas, e estão nas mais longínquas fronteiras desse país plantando, cultivando e colhendo o conteúdo verdadeiro da palavra Justiça.

*Anderson Santos é advogado, doutorando em Sociologia e Direito pela UFF, assessor Jurídico do Cimi e MST e egresso da Turma Evandro Lins e Silva.

**Leia outros textos da coluna Direitos e Movimentos Sociais. Autores e autoras dessa coluna são pesquisadores-militantes do Instituto de Pesquisa, Direitos e Movimentos Sociais, movimento popular que disputa os sentidos do Direito por uma sociabilidade radicalmente nova e humanizada.

***Este é um artigo de opinião. A visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato.

Edição: Vivian Virissimo