Nem de longe se trata de uma “cartinha” assinada por punhado de “caras de pau sem caráter”
José Carlos Garcia
Há exatos 45 anos, mais precisamente às 20h de uma quinta-feira, 04 de agosto de 1977, o jurista Goffredo da Silva Telles lia, nas Arcadas da Faculdade de Direito da USP, a Carta aos Brasileiros. O documento vinha após o chamado “Pacote de Abril”, conjunto de medidas legislativas baixadas pelo ditador Ernesto Geisel – uma emenda à Constituição outorgada pela Junta Militar e seis decretos – que se sucederam ao fechamento do Congresso em 1º de abril daquele ano. Assustada com o bom desempenho da oposição nas eleições legislativas de 77, a ditadura civil-militar instalada em 1º de abril de 1964 tentava mudar as regras do jogo com a bola em andamento, de modo a assegurar, num contexto ainda mais autoritário, maioria no legislativo. Dentre outras coisas, criou a perniciosa figura do “senador biônico”, escolhido indiretamente, que somente seria extinta anos mais tarde.
Assinada por juristas, magistrados, personalidades, o documento foi uma contundente resposta àquele pacote e à ditadura instalada. Discorria pela diferenciação entre legalidade e legitimidade; sobre as noções de Ordem, Poder e Força, evidenciando que somente seria Poder aquele decorrente da persuasão e do Direito, jamais da força das armas; reclamava a soberania da Constituição, clamando por uma Assembleia Nacional Constituinte – a qual, afinal, somente seria convocada oito anos mais tarde, em 27 de novembro de 1985, pela Emenda Constitucional nº 26; diferenciava Estado de Direito e Estado de Fato; resgatava a relação que deveria haver, em uma democracia, entre sociedade civil e Estado; proclamava os valores soberanos dos direitos humanos. O corajoso documento ousava gritar, sob as Arcadas, a voz da verdade: subversiva era a ordem ditatorial imposta pelo Golpe de 1964, a ordem fundada no AI-5, na força, nas prisões ilegais, nos sequestros, no banimento do habeas corpus, na tortura e no assassinato de opositores. Não era subversiva a oposição a tais desmandos ilegítimos e fora do Estado de Direito. “O que queremos é ordem. Somos contrários a qualquer tipo de subversão”, finalizava a Carta. “Mas a ordem que queremos é a ordem do Estado de Direito. A consciência jurídica do Brasil quer um a cousa só: o Estado de Direito, já”.
Aquela tomada de posição, em plena ditadura, exigia de seu autor e leitor, de seus signatários, de seus apoiadores, daqueles que assistiram à sua leitura no Largo de São Francisco, determinação e coragem na defesa de uma ordem constitucional democrática. Não da ordem espúria e outorgada pelas casernas golpistas, mas da ordem que vem do povo, pelo povo, para o povo.
45 anos passados, as enormes conquistas da Constituição de 1988, fruto da luta de toda a sociedade, de uma Constituinte talvez imperfeita, talvez limitada, talvez tímida, mas ainda assim a Constituinte com maior participação popular da história, com a presença ativa e constante da sociedade civil em seus corredores e comissões, estas conquistas estão mais uma vez sob ameaça. Vozes obscuras, vindas dos infernos da força bruta, dos autoritarismos, do assassínio, da tortura mais abjeta, da noção de política como construção de uma estética da violência e do ódio permanentes muito própria de toda forma de fascismo, latem contra o processo democrático, atacam um dos grandes orgulhos nacionais perante o mundo, que é um dos sistemas eleitorais mais ágeis e seguros da Terra, motivo de inveja e admiração de todas as nações. Pregam o retrocesso e a mentira, gozam o prazer perverso da morte e da destruição, numa história trágica que pretende repetir-se, ainda que farsescamente. Esquecem-se que, na viagem de Dante pelo Inferno, levado por Virgílio[i], os círculos mais profundos são destinados aos violentos, aos fraudadores e aos traidores, exatamente tudo o que o fascismo, as “fakenews” e a traição à democracia são.
Contra os grunhidos dos círculos mais profundos dos infernos políticos, ergue-se novamente a coragem de um povo. Em sublime Carta ampla, apartidária, radicalmente democrática, comprometida com os valores que orientam a generosa Constituição da redemocratização, centenas de juristas, artistas, personalidades, membros da magistratura, do ministério público, da defensoria pública, da advocacia pública e privada, pessoas de todos os espectros políticos comprometidos com a Democracia, lançaram nova Carta aos Brasileiros, que pode e dever ser lida aqui. Vêm secundados por empresários, banqueiros, empresas e instituições. Nem de longe se trata de uma “cartinha” assinada por punhado de “caras de pau sem caráter”: ao momento em que este artigo está sendo escrito, além das centenas de signatários originários, outras 732.252 pessoas haviam aderido àquele profundo compromisso com a Constituição, a democracia, a liberdade política.
O imortal dramaturgo Oduvaldo Vianna Filho, o Vianinha, disse certa vez que “olhar nos olhos da tragédia é fazer com que ela seja dominada”. Vivemos momentos sombrios, tristes, repletos de ódio, em que as trevas parecem querer irromper no horizonte. Vemos, nesta cena, horror e violência, e é natural que sintamos aversão e queiramos desviar o olhar. Mas tempos assim não são tempos para pudores e covardias. Há que fazer como Vianinha, e olhar com coragem nos olhos da tragédia, forma única de dominá-la.
Em 2022, olhamos para trás, para o longínquo ano de 1977, e vemos com orgulho os nomes dos signatários da Carta aos Brasileiros daquele ano. Em momento em que a história se fazia a quente, em tempo real, sem saber o que o futuro imediato poderia trazer-lhes, expuseram-se, na certeza de estarem do lado certo daquela História. Em 2067, quando um Brasil em tudo e por tudo diferente do atual – Brasil que esperamos mais justo, mais igualitário, sem fome, sem racismo estrutural, sem recordes de assassinatos de mulheres e pessoas LGBTQIA+, sem assassinatos de indígenas, quilombolas ou lideranças camponesas e ambientalistas, quando este Brasil do futuro revisitar os dias de hoje, 45 anos depois, deverá sentir orgulho daquelas multidões que assinaram a Carta aos Brasileiros, que defenderam com toda energia a Constituição, a democracia e as liberdades.
Eu aderi à Carta aos Brasileiros. Faça parte da História e adira aqui.
*José Carlos Garcia é Doutor em Direito Constitucional pela PUC-Rio, juiz federal, membro da Associação Brasileira de Juristas pela Democracia (ABJD) e da Associação Juízes para a Democracia (AJD).
**A coluna Avesso do Direito mostra uma visão mais ampla do Direito e suas relações com a vida, a democracia e a pluralidade. É escrita pelos juízes federais José Carlos Garcia e Cláudia Maria Dadico, ambos membros da Associação Brasileira de Juristas pela Democracia (ABJD). Leia outros textos.
***Este é um artigo de opinião. A visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato.
[i] Célebre poeta italiano, Dante Alighieri escreveu “A divina comédia” entre 1317 e 1321. É um grande poema em três partes, o Inferno, o Purgatório e o Paraíso. Em sua visão do Inferno, Dante é levado a conhecê-lo pelo poeta Virgílio, visitando todos os círculos em que ele se divide. Quanto mais grave o pecado, mais profundo o círculo. São nove os círculos do Inferno no poema: Primeiro – Limbo; Segundo – Luxúria; Terceiro – Gula; Quarto – Ganância; Quinto – Raiva; Sexto – Heresia; Sétimo – Violência; Oitavo – Fraude; e Nono – Traição.
Edição: Vivian Virissimo