A Organização Mundial da Saúde (OMS) declarou o surto de varíola de macaco (hMPXV: Human Monkeypox Virus - sigla em inglês) como uma emergência de preocupação internacional. A doença viral foi identificada na década de 1970, na República Democrática do Congo, tornou-se endêmica na África Central e África Ocidental, mas pela primeira vez tem um surto de abrangência global.
A classificação como emergência de preocupação seria uma etapa anterior à definição de uma emergência sanitária global, que significaria o descontrole dos contágios em todos os continentes. Até o dia 20 de julho, já acumulavam 19.188 casos em 75 países do mundo, de acordo com a OMS.
Do total, 11 nações africanas registraram infectados, representando cerca de 12% dos casos mundiais, mas com uma das maiores taxas de mortalidade - cerca de 3,7% dos doentes, segundo o Centro de Controle de Doenças da África (Africa-CDC). Desde o início de 2022, foram registrados 2.031 e 75 mortos, em nove países que já consideravam a doença endêmica e outros dois que não haviam registrado infectados.
As regiões mais afetadas, no entanto, são a Europa e a América. Até o dia 25 de julho, o continente europeu tinha 9.697 casos confirmados, Espanha com 3.151 casos, Alemanha com 2.352 e França com 1.567 doentes, lideram o ranking do Centro de Controle e Prevenção de Doenças da Europa (ECDC).
Nos EUA foram confirmados 3.487 infecções, com maior concentração nos estados de Nova York, Califórnia e Ilinois, segundo o CDC.
"Essa categorização serve para criar protocolos para que os países se organizem de acordo com as classificações. O ser humano é um hospedeiro eventual, acidental, por isso não acreditamos que será um surto tão importante do ponto de vista epidêmico, como foi com o sars-cov2", explica Patrícia Beltrão Braga, professora do Departamento de Microbiologia do Instituto de Ciências Biomédicas da USP.
With the tools we have right now, we can stop #monkeypox transmission and bring this outbreak under control. It’s essential that all countries work closely with affected communities to adopt measures that protect their health, human rights and dignity.pic.twitter.com/DqyvRtB8w2
— Tedros Adhanom Ghebreyesus (@DrTedros) July 23, 2022
Embora o número de casos e países com surtos de varíola pareça estar aumentando, a avaliação de risco da OMS não mudou desde a primeira reunião do Comitê de Emergência do Regulamento Sanitário Internacional (RSI), em 23 de junho de 2022, e o risco é considerado "moderado" a nível global, exceto na região europeia, onde é considerado "alto".
Na Espanha, o risco de reprodução é de 1,8, no Reino Unido de 1,6 e em Portugal de 1,4. O período médio de incubação entre os casos relatados é estimado entre sete e nove dias.
Na América Latina, os primeiros casos foram registrados em maio. Em junho, a Organização Pan-americana da Saúde (Opas) divulgou diretrizes para orientar equipes médicas a realizar exames de detecção e ajudar a rastrear os contágios.
No Brasil, segundo dados ministério da Saúde desta quinta (27) já existem 978 infecções confirmadas, a grande maioria no estado de São Paulo com 744 casos, seguido do Rio de Janeiro com 117 doentes, 44 em Minas Gerais, 19 do Paraná, 14 do Distrito Federal, 13 em Goiás, cinco na Bahia, quatro em Santa Catarina, quatro do Ceará, três do Rio Grande do Sul, dois do Rio Grande do Norte, dois do Espírito Santo, três de Pernambuco, e um cada de Mato Grosso do Sul, Acre e Tocantins
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"Nós temos um surto de varíola, que se dispersou rapidamente pelo mundo com novas formas de transmissão sobre os quais ainda entendemos pouco e sobre os quais aplicamos os critérios de regulação internacional. Por todas essas razões, declaramos a varíola como uma emergência de saúde pública e de preocupação internacional. É um surto que pode ser contido com as estratégias corretas aplicadas nos grupos certos", declarou o diretor geral da OMS, Tedros Adhanom Ghebreyesus.
Para o presidente do Conselho Nacional de Secretários da Saúde (Conass), Nésio Fernandes, o Brasil comete os mesmos erros com a pandemia da covid-19, com a falta de testes e de uma política coordenada.
A médica epidemiologista e diretora Instituto de Medicina Tropical Pedro Kouri (Cuba), Yanaris López, concorda que é momento de adotar protocolos de contenção. "Se não tomarmos as medidas necessárias nas portas de entrada, irá acontecer o mesmo que vivemos agora com a covid-19, talvez com outra intensidade, mas é preocupante", afirmou em entrevista ao Brasil de Fato.
Sintomas e transmissão
De acordo com estudos preliminares do New England Journal of Medicine, que analisou amostras de 520 infecções em 16 países, de abril a junho de 2022, em 95% dos casos o vírus foi transmitido através de relações sexuais. No entanto, a doença não pode ser prevenida com o uso de preservativos porque o contágio acontece no contato com secreções de lesões na pele da pessoa contaminada ou por gotículas de saliva liberadas ao falar, beijar, tossir, espirrar. Da mesma forma, objetos que tenham contato com a secreção de pessoas infectadas também podem armazenar o vírus ativo.
Apesar das evidências, os modos de transmissão que sustentam o surto atual não são totalmente compreendidos.
"Se você tiver suspeita de infecção, deve usar máscara para evitar liberar os perdigotos, que são gotículas de saliva. Mesmo que não percebamos, enquanto falamos, estamos eliminando essas gotículas que podem conter o vírus da varíola do macaco ou qualquer vírus. Então é isso: usar máscara, evitar o contato com outras pessoas, sempre lavar as mãos. Se há uma pessoa infectada em casa, o ideal é que se isole tudo o que ela estiver usando para não infectar outros indivíduos. São coisas básicas que já aprendemos com a covid-19", explica a especialista em microbiologia, Patrícia Beltrão Braga.
A infecção pode ser confirmada pelo método PCR, que detecta o vírus a partir da amplificação do DNA. A Opas está se esforçando para viabilizar a disponibilidade dos testes. A Fiocruz vem produzindo controles positivos, que são importantes para atestar a confiabilidade dos kits PCR.
A doença veio parar aqui não pelos macacos, mas porque uma pessoa contaminada o trouxe.
Os sintomas mais comuns são febre, fadiga, dor de cabeça e dores musculares. Após o início da febre, em até cinco dias, podem aparecer manchas vermelhas e lesões na pele, que provocam coceira. Já no estágio avançado da doença, pode haver aumento de gânglios na região cervical e inguinal, com úlceras que emitem secreção até que a lesão forme casca e cicatrize.
A pessoa só deixa de transmitir o vírus quando a pele está completamente cicatrizada.
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"A doença se chama varíola de macaco, mas o principal portador da doença não são os macacos, são roedores. Assim como já aconteceu na febre amarela, em algumas regiões do Brasil, as pessoas estão envenenando macacos com medo de pegar a varíola. As pessoas precisam entender que o animal não está contaminado, quem está contaminado é o ser-humano. A doença veio parar aqui não pelos macacos, mas porque uma pessoa contaminada o trouxe.Você só vai pegar varíola de macaco se você entrar em contato com alguém que tem a doença. Não existe outra maneira de se contaminar. Não há um vetor, como um mosquito que pica alguém aqui e pode voar e levar o vírus pra longe", explica Braga.
Não há tratamento específico, mas os quadros clínicos costumam ser leves, sendo necessários o cuidado das lesões. O maior risco de agravamento se refere, em geral, a pessoas imunossuprimidas, como pacientes com HIV/AIDS, leucemia, linfoma, metástase, transplantados, pessoas com doenças autoimunes, gestantes, lactantes e crianças com menos de 8 anos.
Nova vacina?
A desigualdade de acesso às vacinas ainda preocupa, após dois anos de pandemia de covid-19 e 6,3 milhões de mortos ainda há países que não atingiram a meta mínima de 70% da população imunizada contra o vírus sars-cov2. Nos países pobres somente 28% da população idosa de 37% dos trabalhadores de saúde foram vacinados, enquanto em potências europeias, como o Reino Unido, já aplicam a segunda dose de reforço.
Na nova estratégia de proteção à covid-19, a OMS inclusive aumentou a meta para 100% de vacinação em caso de idosos e profissionais da saúde.
"Para a varíola dos macacos a gente tem cerca de 1 a 10% de taxa de mortalidade, segundo os dados da África, variando de acordo com a região. E isso é muito mais do que observamos com a covid-19. Com o sars-cov2 a taxa de mortalidade é menor que 1%. Então se a gente não prestar atenção, as pessoas vão começar a morrer por conta de um vírus que já conhecemos, que tem vacina", alerta a bióloga Patrícia Beltrão Braga.
Se a gente não prestar atenção, as pessoas vão começar a morrer por conta de um vírus que já conhecemos, que tem vacina
No sábado (23), após a declaração da OMS, o Ministério da Saúde afirmou que o Brasil está preparado para enfrentar a doença —que tem quase 700 casos registrados no país— e articula a compra de vacinas para imunizar a população.
A varíola humana (Smallpox) foi erradicada no Brasil em 1980. Duas vacinas usadas para conter o surto da doença podem surtir efeito com a varíola de macacos. O último caso registrado no país foi em 1977, na época, a taxa de mortalidade pelo vírus era de 30% após contaminação.
"E por que as pessoas deixaram de morrer por varíola? Porque foram vacinadas. Uma das maiores campanhas de vacinação no mundo foi a de varíola. As pessoas foram vacinadas e a doença sumiu", defende Patrícia Beltrão Braga.
Para a médica cubana, combater a desinformação e os movimentos antivacinas deve ser uma tarefa assumida pelo Estado. "Desde que começou a ideia de que a Cuba poderia ter uma vacina [contra a covid-19], nós já estávamos informando o povo sobre para onde estávamos indo. O segundo detalhe é que não era qualquer pessoa que transmitia essa informação, eram cientistas especializados que deram entrevistas na televisão", disse Yanaris López.
A ACAM 2000, patenteada pela empresa francesa Sanofi, foi usada na década de 1970 contra a varíola humana e teve o uso autorizado nos EUA contra a varíola de macacos. A fórmula utiliza o virus vaccinia, que se reproduz dentro da célula humana e oferece proteção contra o small pox (vírus da varíola humana) e o monekeypox (vírus da varíola de macacos).
A outra fórmula Imvamune ou Imvanex, produzida pela indústria farmacêutica dinamarquesa Bavarian Nordic, também foi usada no passado em surtos de varíola humana e, na última segunda-feira |(25), foi aprovada na UE para campanhas de imunização contra a varíola de macacos.
Também utiliza o vírus vaccinia, porém uma versão inativa, incapaz de causar doença grave, inclusive em imunossuprimidos. Com essa fórmula são necessárias duas doses.
"Produzir uma vacina demanda tempo. Não precisamos descobrir a fórmula, porque já a conhecemos, mas produzir o imunizante em larga escala requer tempo. O vírus cresce em cultura de célula e a biologia celular tem um tempo", diz Braga.
O Ministério da Saúde afirmou em comunicado que está em tratativas com a Opas e a OMS para aquisição de 50 mil doses da Imvanex para a população brasileira.
O governo de São Paulo disse que há uma disputa "acirrada" pelas vacinas. Segundo o secretário de Ciência, Pesquisa e Desenvolvimento em Saúde, David Uip, outra alternativa seria que a Fundação Oswaldo Cruz e o Instituto Butatan passem a produzir fórmulas próprias, mas nesse caso, o tempo de fabricação até a distribuição pode ser de nove meses.
Além das vacinas, também existem medicamentos com eficiência comprovada contra o vírus. O antiviral Tecovirimat (TPOXX) é recomendado para pacientes em estágio grave da doença nos EUA; o Brincidofovir também foi autorizado para tratar estadunidenses que contraíram o vírus monkeypox. Já no Reino Unido, o antiviral Cidofovir, usado para tratar infecções oculares em pacientes com HIV, também é aplicado em contaminados com varíola de macacos.
"Se a gente começar a ter muitos casos no Brasil, provavelmente a Anvisa irá avaliar para liberar medicamentos que já estão em uso em outras partes do mundo. Portanto é um cenário um pouco mais confortável do que a gente teve com o sars-cov2, que era uma doença que não sabíamos nem como tratar", defende a microbiologista Patrícia Beltrão Braga.
Protocolos da OMS
Pela falta de doses suficientes, a OMS estabeleceu um protocolo para o início das campanhas de vacinação.
Para Estados que não tiveram registros de doentes nos últimos 21 dias, a Organização recomenda aumentar as campanhas de conscientização sobre a doença e intensificar a vigilância epidemiológica com testes de diagnóstico "acessíveis e precisos".
Nos países em que foi houve um surto entre animais, mas não se identifica o contágio entre humanos, a OMS sugere a criação de equipes multidisciplinares de Saúde Única entre especialistas de saúde e de zoonoses.
Já os Estados que registraram os primeiros casos de varíola dos macacos, o organismo sugere implementar uma política de ação rápida para interromper a transmissão entre humanos, isolando as pessoas infectadas, rastreando possíveis contágios e realizando testes para determinar o sequenciamento genômico do vírus.
Nestes casos, a OMS também orienta considerar o uso da vacina como medida de profilaxia para tratar pacientes contaminados.
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No mesmo relatório, do Comitê de Emergência do Regulamento Sanitário Internacional (RSI), os especialistas ressaltam a importância de que Estados com capacidade de fabricação de vacinas trabalhem em conjunto com a OMS para fornecer imunizantes e outros suprimentos necessários de acordo com as "necessidades de saúde pública".
A diretora do Instituto Pedro Kouri de Cuba ressalta a importância da integração regional para fazer frente à nova emergência sanitária. "Temos que conseguir que todos os países da América Latina se unam. Não somente para políticas econômicas, mas também para ações de prevenção e de conhecimento científico. As fortalezas de um país podem ser oportunidades para outro. Independente das convicções políticas, sempre temos coisas que se parecem, e o que importa é o povo. O que é fundamental é implementar medidas que cuidem da saúde do povo", disse Yanaris López.
A OMS indica a urgência de "fazer todos os esforços para usar vacinas existentes ou novas contra a varíola dos macacos dentro de uma estrutura de estudos colaborativos, usando métodos de projeto padronizados e ferramentas de coleta de dados para estudos clínicos e de resultados".
Edição: Arturo Hartmann