“A foto é uma verdadeira obra de arte, dá para ver a contradição né?”. Adonilton Rodrigues vive há uma década no Acampamento 8 de março, do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), em Planaltina (DF). E se refere à imagem aérea - que ilustra essa reportagem - e sintetiza, visualmente, um dos grandes embates políticos, ambientais e econômicos do país: entre o modelo da agricultura familiar e o do agronegócio.
No primeiro plano, o acampamento – que completará 11 anos no próximo dia internacional de luta das mulheres, como seu nome já faz deduzir. Nos três hectares do lado esquerdo, as casas arborizadas das 80 famílias camponesas. Nos 14 hectares restantes, roça de agricultura familiar para a produção de diversos alimentos, em especial de hortifruti granjeiro e hortaliças.
“Desse lado estamos nós, produzindo vida. Não só no solo, mas também a vida animal e social, não melhoramos só a vida de quem mora no acampamento, mas também a de quem está na cidade”, descreve Adonilton, que integra também a direção nacional do movimento.
Desde 2019, os acampados conseguem se sustentar com o que plantam, tirar dali uma renda e, também, contribuir com campanhas de solidariedade. Durante a pandemia, o acampamento doou 60 mil toneladas de comida. “Fizemos doações na rodoviária de Planaltina, em hospitais, para pessoas em situação de rua”, conta Adonilton.
Já a homogênea imensidão territorial atrás do acampamento é a de uma fazenda. Toda a área é destinada a monocultivo de soja e milho transgênicos em larga escala: produção de commodities do agronegócio para exportação.
Este 25 de julho, dia da agricultura familiar, chega em um momento singular no Brasil. Por um lado, celebra-se o seu papel central na produção da comida que chega à mesa da população. De acordo com o último Censo Agropecuário de 2017, o mais recente feito pelo IBGE, 76,8% dos estabelecimentos rurais no país são de agricultura familiar.
Por outro, o agronegócio avança sobre áreas que antes produziam alimentos; a reforma agrária está paralisada; a insegurança alimentar atinge 58,7% da população; e meio milhão de pessoas correm o risco de ser despejadas a partir do dia 1 de novembro.
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A iminência das remoções
Isso porque, em liminar por conta da pandemia de covid-19, o Supremo Tribunal Federal (STF) proibiu as remoções forçadas no país até 31 de outubro. O MST calcula que cerca de 200 áreas ocupadas por camponeses – muitas das quais produzindo alimentos saudáveis - estão ameaçadas de despejo quando a liminar perder a vigência.
Uma delas é a do Acampamento Marielle Vive, organizada pelo MST na cidade de Valinhos, no interior paulista. A terra de 130 hectares tem, como principal símbolo da produção agroecológica das 450 famílias que ali vivem, uma horta coletiva em formato de mandala de mil metros quadrados.
Segundo a Campanha Despejo Zero, das 142.385 mil famílias vivendo na iminência de perder o teto, aproximadamente 30 mil vivem em zonas rurais. Entre essas cerca de 120 mil pessoas, 20 mil são crianças menores de 12 anos.
“É notório, especialmente nesse período de pandemia, o papel da agricultura familiar camponesa na produção de alimentos”, avalia Leomárcio Araújo, da direção nacional do Movimento dos Pequenos Agricultores (MPA). “Se essa quantidade de pessoas for despejada, o que é mais grave é que, para além de reduzir a produção de alimentos, um público imenso vai ser colocado numa situação de maior vulnerabilidade, inclusive alimentar”, aponta.
Para Alexandre Conceição, da direção nacional do MST, a mobilização que pressionou o ministro Luís Roberto Barroso a prorrogar, pela terceira vez, a proibição dos despejos, “foi um marco da aliança entre os movimentos do campo e da cidade”. Mas a luta não acabou. “Vai seguir do ponto de vista institucional, mas também na resistência dos acampamentos”, garante.
“Porque de fato, se esses despejos ocorrerem, o país, com a crise alimentar que está atravessando, com a crise de emprego e com a falta de teto, vai significar que mais de meio milhão de pessoas vão perder seus lares e se juntarão às outras milhões que hoje não têm um teto, não tem um prato de comida”, alerta Conceição.
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A Rede Penssan revelou que atualmente 15,5% da população brasileira está passando fome. Neste cenário é mais trágico constatar que – por grilagem, incêndio, despejo ou arrendamento – a área cultivada para a produção de commodities para exportação está, cada vez mais, avançando sobre aquela destinada a alimentos.
O avanço da fronteira do agro
Se em 1988 o Brasil dedicava 24,7% da sua área cultivada para plantar arroz, feijão e mandioca, em 2018 essa proporção despencou para 7,7%. Por outro lado, nesse mesmo período de 30 anos, as lavouras voltadas para a exportação ocupavam 49,8% da área de cultivo do país e avançaram para 78,3% dela. Os dados, com base no IBGE, estão no artigo Expropriação, violência e R-existência: uma geografia dos conflitos por terra no Brasil (2021).
“O agronegócio tem nadado de braçada, ocupando esses territórios antes cultivados pela agricultura familiar camponesa, por comunidades e povos tradicionais. O risco que corremos é o dessa diversidade ser paulatinamente dizimada”, constata Leomárcio Araújo.
“Regiões do país que historicamente têm uma produção de agricultura familiar importante – como por exemplo o arroz do Maranhão, um cultivo tradicional a partir de uma semente crioula - estão tendo suas culturas substituídas pela soja”, alerta o dirigente do MPA.
Veneno
O avanço da fronteira do agro significa não só que terras que antes produziam alimentos passam a ser usadas para a monocultura de commodities. Mas também que a pulverização de agrotóxicos - parte do pacote tecnológico do modelo adotado pelo agronegócio brasileiro – atinge, inclusive, quem implementa outro modelo, mas que está no entorno.
“Hoje o agrotóxico não prejudica muito a nossa produção porque a gente fez barreiras, mas temos esse embate bem pesado mesmo”, conta Adonilton, chamando a atenção para o fato de que estão localizados em cima da Estação Ecológica das Águas Emendadas.
A agricultura familiar está de pé
Para Alexandre Conceição, neste dia da agricultura familiar, “não há muito o que comemorar”: “As áreas de produção de alimentos têm diminuído, a inflação está corroendo o poder de compra da classe trabalhadora e a reforma agrária está paralisada. É uma equação difícil”, avalia. “O grande desafio que temos é o de reverter esse processo e isso passa essencialmente pela derrota de Bolsonaro”, diz.
“É um governo latifundiário, do agronegócio, predador. Mas estamos resistindo nos assentamentos e acampamentos e produzindo alimentos mesmo sem políticas públicas, com a destruição e a perseguição do governo Bolsonaro. Para aliviar a dor e a fome do povo brasileiro”, afirma Alexandre.
“Basta ver nossa produção de café no Espírito Santo e na Bahia, nossa produção de arroz no Rio Grande do Sul e no Maranhão, de fruticultura no sertão pernambucano”, ilustra Conceição. “Seguimos produzindo bastante, com essa perspectiva e essa capacidade de resistência”, conclui.
Exemplo disso foi a reocupação, na última quinta-feira (21), da fazenda Mata Verde na cidade baiana de Guaratinga. As 150 famílias que ali viviam e plantavam foram removidas à força pela Polícia Militar, por determinação judicial. Depois de uma semana na beira da estrada, retomaram a área que, antes, não cumpria a função social.
Na última sexta-feira (22), o MST fez uma ação de distribuição de 52 toneladas de alimentos para famílias urbanas de Guarapuava (PR), em ação para marcar o dia da agricultura familiar camponesa.
“A reforma agrária, junto com a agricultura familiar, é isso”, resume Alexandre: “cuida do meio ambiente, produz alimentos saudáveis e garante que a terra seja democratizada, cumprindo sua função social”.
Edição: Rodrigo Durão Coelho