Rio Grande do Sul

Coluna

Pelo direito e o desejo de ir e rir

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"O verdadeiro objetivo da luta feminista é o fim da cultura do patriarcado" - Foto: Tano D'Amico
Temos um longo caminho a trilhar e que, a partir de janeiro de 2023, com sorte, será mais plausível

Uma mulher nunca estará a salvo enquanto houver a cultura do patriarcado. Nós, provavelmente, passaremos a vida inteira sem estarmos a salvo. Então, se não iremos ver o resultado, por qual razão nos unimos a nossos pares e discutimos políticas públicas em prol das mulheres? Para que as que vierem depois de nós estejam minimamente a salvo. E o que é estar a salvo? É uma espécie de redoma ou um lugar onde só mulheres existam? Não. Estar a salvo é poder verdadeiramente exercer o direito de ir e vir e o do livre pensamento e expressão.

É a possibilidade de sair de casa sem antes ter de arquitetar um estratagema, uma tática de guerrilha contra as possíveis agressões físicas e morais que se possa vir a sofrer. É não ter que deixar a ternura sucumbir, pois o mundo nos exige uma couraça dura e fria na maior parte das situações cotidianas por uma simples questão de sobrevivência. É ter vida, e não sobrevida.

Dentro no pequeno e abstruso espaço de mundo que ocupamos muitas foram as recentes notícias que evidenciam o estado de perigo que assola as vidas de mulheres. Um aborto legal negado a uma menina de 10 anos, a tentativa de criminalização da mulher que opta pelo aborto legal por uma cartilha do Ministério da Saúde, a quebra de sigilo de uma jovem que deu à luz e entregou o bebê para a adoção por ser resultado de um estupro, uma meia dúzia de casos de feminicídio e, finalmente, o estupro sofrido por uma gestante na sala de parto. Repito: o estupro sofrido por uma gestante na sala de parto.

Aí, você me pergunta: e o direito a um acompanhante antes, durante e após o parto, garantido pela Lei 11.108/2005? Sim, há uma lei que o garante. Entretanto muitos hospitais brasileiros, usando a pandemia como justificativa, estão contrariando a recomendação da OMS, que orienta pela manutenção do direito ao acompanhante para a gestante, ainda que ela esteja com covid-19. Porém, engana-se quem pensa que tal restrição tem ocorrido somente durante a pandemia, pois esta tem sido uma prática recorrente desde antes dela. E para isso há um nome: violência obstétrica.

Vivemos, portanto, um roteiro de filme de terror e sobre ele o que se escuta, além das sórdidas declarações misóginas e machistas que tentam minimizar as atrocidades, são os gritos de “basta” e a cobrança pela punição dos agressores. E este, a meu ver, é o círculo vicioso que nos têm enredado e imobilizado os necessários avanços.

São mais de 15 anos de vigência da Lei Maria da Penha, uma das mais significantes conquistas do movimento feminista brasileiro, e percebo que muitos só encaram esse diploma legal pelo atrasado viés do punitivismo, sistema este que, para o mundo que queremos construir, já se mostrou ineficaz ao longo dos séculos. Punir os agressores não muda a realidade.

Perde-se de vista, sob tal ótica, o aspecto mais expressivo e vanguardista da Lei Maria da Penha: o de se constituir em uma legislação que, ao contrário da grande maioria das leis, além da criminalização, busca o fim da violência de forma concreta por meio do estabelecimento de políticas públicas, promoção de estudos e programas educacionais preventivos que alcancem o que é o verdadeiro objetivo da luta feminista: o fim da cultura do patriarcado.

Portanto, a reflexão que hoje se impõe é a de que, vivendo em um momento político de progressivo desmonte dos programas sociais ligados à saúde e à proteção da mulher, há que se ampliar o foco das manifestações e esforços para exigir do Poder Público a implementação das ações de prevenção e coibição da violência asseguradas pela Lei Maria da Penha. Chega de só tentar caçar os ratos, sem investir na crucial efetiva mudança do comportamento social.

É, ainda, um longo caminho a ser trilhado e que, a partir de janeiro de 2023, com sorte, será mais plausível.

Mas até lá, enquanto o Estado não atender aos nossos apelos e reivindicações, resta-nos persistir na luta diária da construção cidadã de um ambiente mais seguro e saudável para as mulheres, de mútuo e efetivo apoio, mediante, especialmente, ações cotidianas. Em especial, intervindo e impedindo que o discurso patriarcal tenha voz. De nada adianta capturar os ratos enquanto existirem os precários esgotos.

* Manuela Lopes Dipp, poeta, pós-graduada em Direito, organizadora do Sarau da Invencionática, realizado online e semanalmente desde julho de 2020. Autora do livro Poemas para colocar dentro de uma garrafa, Editora Bestiário/2021.

** Este é um artigo de opinião. A visão da autora não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato.

Edição: Katia Marko