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Cinco teorias erradas sobre a revolução contemporânea

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Revoluções são processos de participação popular tão ou mais autênticos, verdadeiros e representativos que eleições. - (Foto: Reprodução)
A mania de discutir táticas sem considerar qual é a estratégia que as ordenam é um mau hábito

O correr da vida embrulha tudo. A vida é assim: esquenta e esfria, aperta e daí afrouxa, sossega e depois desinquieta. O que ela quer da gente é coragem (...) Só se pode viver perto de outro, e conhecer outra pessoa, sem o perigo de ódio, se a gente tem amor. Qualquer amor já é um pouquinho de saúde, um descanso na loucura.

Riobaldo em “Grande Sertão: Veredas” Guimarães Rosa

 

Quando a situação política é muito ruim, uma relação social de forças desfavorável para a defesa dos interesses dos trabalhadores, mais do que nunca é necessário pensar sobre o que é uma revolução. A mania de discutir táticas sem considerar qual é a estratégia que as ordenam é um mau hábito.

Injustiça e tirania, em graus variados de intensidade, governam o mundo. Se considerarmos um grau de abstração muito elevado para a análise, toda e qualquer sociedade está, continuamente, diante da necessidade de resolver, em maior ou menor medida, os conflitos que resultam tanto da sua inserção no mercado mundial, da disputa de posições entre Estados, quanto das lutas sociais que as dividem, destroçam,despedaçam e, até desintegram.

Se não o fizerem mergulham em estagnação. A estagnação econômica e social é o caminho da decadência nacional. Indivíduos podem renunciar à defesa de seus interesses. Mas as classes não cometem suicídio histórico. A destruição de uma nação não pode ser feita sem que haja violenta resistência. A decadência nacional pode demonstrar-se irreversível, mas haverá luta revolucionária.

A solução dos conflitos exige, portanto, mudanças. Esta necessidade foi mais ou menos intensa em função de muitas circunstâncias. O que impera, em condições "normais" de dominação, é força de inércia dos interesses dos dominantes. Em condições "normais" as massas populares não acreditam na possibilidade de mudança. A exploração, o abuso, a opressão tenderam a perpetuar-se. E, enquanto prevaleceu a prosperidade social e o crescimento econômico, transformações na forma de pressões, embora tenham exigido organização e disposição de luta foram menos difíceis.

Transformações econômico-sociais podem assumir a forma de reformas ou de revoluções. Quando o caminho das reformas progressivas está bloqueado, se abre a via das revoluções.

Há cinco teorias perigosas sobre o tema. Elas expressam a permanência de preconceitos fortes sobre o tema. A primeira e mais reacionária remete ao clássico argumento da conspiração. Afirma que revoluções não foram mais do que uma manipulação de massas por agitadores profissionais, invariavelmente, ao serviço de interesses inconfessáveis.

Confundem-se neste raciocínio duas dimensões do problema teórico. Primeiro, perde-se a percepção do conflito, em função do a priori de que mudanças poderiam e deveriam ter sido realizadas através de vias concertadas. Segundo, desqualificam-se os sujeitos sociais das revoluções, as classes interessadas na mudança em função do papel dos sujeitos políticos, as lideranças, os instrumentos de organização que pretendem representá-las.

Em todo o tipo de luta política, das mais simples às mais radicalizadas, estão presentes demagogos empenhados em se aproveitar das circunstâncias. O argumento parece poderoso, mas não é. Oportunistas e arrivistas não são senão a poeira da história. Por outro lado, a presença de revolucionários, ou seja, de uma vanguarda animada por um projeto de reorganização da vida social, pode ajudar ao triunfo de uma revolução, mas não explica porque aconteceu uma revolução.

Revoluções precipitaram-se nas mais distintas sociedades, existissem ou não com antecedência revolucionários dedicados à sua preparação. A sua maior ou menor influência depende da existência de um processo revolucionário, e não o contrário.

A segunda teoria remete à questão da legalidade do exercício institucional do poder. É necessário recordar que uma revolução não se deve confundir com o triunfo de uma insurreição. Uma revolução política não é o mesmo que um golpe de Estado, quartelada ou putsch, embora a hora da insurreição possa precipitar ou decidir, no início ou ao final, o destino de um processo revolucionário.

Revoluções são processos de participação popular tão ou mais autênticos, verdadeiros e representativos que eleições. Têm, portanto, uma legitimidade histórica irrefutável.

A terceira teoria remete à ideia de que revoluções só foram possíveis em nações longínquas ou muito atrasadas, sendo processos bárbaros de luta contra regimes ditatoriais próprios de sociedades ainda em estágios primitivos de desenvolvimento econômico, social, cultural e político. Esta hipótese não corresponde à realidade histórica. Qualquer análise superficial permite concluir que situações pré-revolucionárias ou diretamente revolucionárias convulsionaram nações entre as mais desenvolvidas como a França em 1968.

Recordemos, também, que a onda revolucionária que varreu a América Latina na primeira década do século XXI (Equador em 2000; Argentina em 2001; Venezuela em 2002; e Bolívia em 2003/2005) foi direcionada, inteiramente, contra governos eleitos nos marcos de regimes democrático-liberais, não contra regimes despóticos.

A quarta teoria remete ao argumento da miserabilidade, e defende que somente em condições de fome e pobrezas extraordinárias seria possível a eclosão de situações revolucionárias. Tampouco esta hipótese é defensável. Portugal em 1974/75 estava entre as nações em que a maioria da população tinha acesso a uma dieta simples, mas variada, rica e equilibrada.

A revolução na metrópole foi detonada pela revolução anticolonial na Guiné, Angola e Moçambique: uma guerra colonial longa por treze anos. Evidentemente, é verdade que a penúria favorece a instabilidade política, como ilustra a triste sequência de golpes militares na África subsaariana. Não obstante, não encontraremos causalidade direta entre escassez e mobilização proletária e camponesa como pode confirmar o exemplo da Índia pós-independência, uma das sociedades em que a imensa maioria da população ainda sobrevive em condições de vulnerabilidade extrema, senão fome. Mas não viveu situação revolucionária desde a independência.

A quinta hipótese é aquela que estabelece uma relação direta de causalidade entre guerra e revolução. A guerra foi, em inúmeras ocasiões (Alemanha, Áustria Hungria, Turquia em 1918), a antessala da revolução. Quando uma classe dominante convoca a nação para a guerra, com todos os imensos sacrifícios e suplícios que a guerra impõe, a hora da derrota pode coincidir com uma crise geral do Estado.

No entanto, tampouco a derrota militar autoriza concluir que uma revolução se colocará, necessariamente, em marcha. A relação inversa, a revolução como antessala da guerra é, também, possível, mas não é inexorável.

Injustiça e desigualdade assumiram as formas mais variadas em distintos países, e estiveram presentes como fatores de impulso de crises sociais graves.Todavia, crises sociais graves não são o bastante para explicar a explosão de revoluções.É necessário que muitos milhões cheguem à conclusão de que elas são insolúveis pela via das pressões e negociações.

A maioria dos trabalhadores e da juventude nas sociedades contemporâneas, em situações de estabilidade política, não confia na força social de suas lutas. Revoluções são processos raros, por isso mesmo. Porque a força de inércia histórica mais poderosa é o medo. Aqueles que são vítimas da exploração ou da opressão duvidam muito da capacidade de unir suas forças, hesitam na hora de enfrentar, seriamente, seus inimigos de classe, e são cépticos sobre a chance da vitória.

O que explica, em primeiríssimo lugar, o atraso da transformação social não é a conformidade das amplas massas com suas condições de vida. As massas populares resmungam, reclamam, e resistem o tempo todo. Mas não confiam em si mesmas, porque estão dilaceradas pelo receio, temor, horror do que podem ser as represálias dos ricos e poderosos.

Em última análise, em um plano de abstração mais elevado, o medo da guerra civil. Não houve processo revolucionário que não tenha enfrentado contrarrevolucão. As forças interessadas na permanência da ordem estão em luta, permanentemente, contra os impulsos de mudança, porque têm interesses a preservar.

O século XX e o XXI, época do apogeu e, hegelianamente, da decadência do capitalismo não foi imune a crises, mas as forças de inércia não foram menos poderosas. As concessões às reivindicações sociais das classes exploradas e oprimidas, mesmo quando foram articuladas no interior institucional dos regimes democráticos não foram feitas nunca sem muita luta, portanto, cedidas, preventivamente, pelo “grande medo” da “parteira” da história do século XX: a revolução.

*Valerio Arcary é professor titular no Instituto Federal de São Paulo (IFSP), militante da Resistência/Psol e autor de O Martelo da história, entre outros livros. Leia outras colunas.

**Este é um artigo de opinião. A visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato.

Edição: Vivian Virissimo