Coluna

Proteger quem cuida

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A desproteção não é uma casualidade para a prática ultraneoliberal. É uma ação programada, um método de ação - Reprodução: PPDDH/PB
O antropoceno, casado com o capitalismo predatório, coloca a vida sob risco

Por Paulo César Carbonari* e Joisiane Sachez Gamba**

Falo da resistência, da indignação, da “justa ira” dos/as traídos/as e dos/as enganados/as. Do seu direito e do seu dever de rebelar-se contra as transgressões éticas de que são vítimas cada vez mais sofridas.

Paulo FREIRE, Pedagogia da Autonomia (1997, p. 113).

Proteger quem cuida, quem faz a defesa, quem cultiva as causas, quem leva adiante as lutas populares, as lutas por justiça, por direitos humanos, pelos bens comuns é ação necessária, sempre. Mas, afinal, por que é preciso proteger?  

É preciso proteger porque aqueles/as que se engajam em processos de luta estão em risco em razão do significado estrutural de sua atuação, mas também em consequência das configurações contextuais. O antropoceno, casado com o capitalismo predatório, coloca a vida sob risco (com perigos e ameaças) e junto com ela todos/as que a promovem e protegem. Todos/as os/as que se apresentam contrários/as à acumulação concentradora, que a tudo transforma em “mercadoria”, são tratados/as como inimigos/as a serem eliminados/as. Esta matriz de fundo vai se traduzindo em configurações contextuais e agentes que a realizam nos territórios.  

A destruição da floresta, o garimpo ilegal, a pesca predatória, a agricultura devastadora, os grandes empreendimentos, a superexploração do trabalho, as milícias, o crime organizado, as forças de segurança liberadas para matar, o desmonte dos órgãos públicos encarregados da proteção dos territórios e de suas populações, o ataque aos povos indígenas e aos povos e comunidades tradicionais, enfim, estas e outras são suas manifestações, vão variando, mas carregam características comuns e alvos a serem vitimados.  

A desproteção não é uma casualidade para a prática ultraneoliberal. É uma ação programada, um método de ação, visto que não cabe em sua dinâmica nem a existência de outros processos planetários que não sejam baseados na depredação, no patriarcado, no racismo e na exploração. Nela também não tem lugar para a diversidade dos/as sujeitos/as e que estes/as são sujeitos/as de direitos – são “atrapalhos” a seus projetos de morte, os/as descartam e destroem, povos, populações e ecossistemas.  

Aqueles/as que “não fizerem por merecer” não têm porque serem cuidados/as, pelo contrário, suas precariedades serão potenciadas, não protegidas. Proteger equivaleria a um dispêndio que não cabe à sociedade e nem mesmo no rol das atribuições do Estado, que, ao modo de uma empresa, somente haverá de se preocupar com produzir “resultados lucrativos”. Há, portanto, uma desproteção estrutural em todos os sentidos que vai sendo efetivada de modo programado e sistemático.  

A sua efetivação precisa romper com princípios básicos dos direitos humanos como a universalidade (não tem proteção para todos/as), a indivisibilidade (não dá para garantir tudo o que precisa) e a interdependência (vamos ver o que dá para atender) dos direitos humanos. Além destes, também é necessário relativizar direitos, admitir e efetivar retrocessos e, acima de tudo, aceitar a legitimidade de práticas discriminatórias e de dominação. Na prática, a desproteção caminha junto com o descomprometimento com os direitos humanos e com o rebaixamento dos níveis aceitáveis de sua realização.  

Defensores/as de direitos humanos, lutadores populares, militantes sociais, são agentes de promoção da proteção integral, universal, de todos/as os/as seres humanos, de todos os seres vivos. Não aceitam, de modo algum, romper com os princípios dos direitos humanos, exigem que aqueles direitos que ainda são promessa, sejam efetivamente realizados no cotidiano da vida, em todos os lugares, para todos/as. Agem para afirmar novos direitos a partir das lutas dos/as “sem-direitos” e para renovar criativamente todos os direitos já afirmados e instituídos. Lutam contra a acumulação concentradora dos bens comuns e reconstroem valores, reeducam práticas.  

Estas posições os/as colocam na mira dos agentes do capital e os fazem potenciais alvos da fúria destrutiva de seus agentes. É por isso que precisam ser cuidados/as e protegidos/as. Porque estão em risco, pelos perigos e/ou pelas ameaças. Mas, os riscos que encontram não são todos iguais e nem se apresentam sempre da mesma maneira, ainda que possam haver certas regularidades e similaridades.  

Por isso é fundamental inserir nas análises da realidade, prática cultivada pela educação popular, além de outros elementos fundamentais para orientar a ação das organizações populares, também análises que possam evidenciar os riscos para a atuação dos/as defensores/as de direitos humanos, os potenciais de proteção popular, as necessidades de proteção institucional, as forças e fraquezas das organizações, além dos cenários nos quais se configuram situações de perigo e de ameaça, e como elas se desenham na correlação de forças estrutural, mas também contextualizada no tempo e no espaço.  

A construção de estratégias, o planejamento da ação protetiva e a implementação da proteção contam com requisitos fundamentais para que sua efetivação alcance a finalidade a que se destina: preservar e cuidar da vida e garantir que siga em luta. Neste sentido, a proteção é medida que sempre precisa ser acompanhada da promoção e da reparação para que possa se constituir em atuação integral.  

A orientação de fundo é sempre evitar violações (ação de promoção), mas se houver risco de que aconteça (necessidade de proteção) ou já tiver acontecido (necessidade de reparação), faz-se necessário uma intervenção sistemática. Se é verdade que o risco é parte da dinâmica da vida e, atualmente, cada vez mais, a sua potencialização e sua transformação em efetiva violência ou violação haverão de ser evitadas pela implementação de medidas protetivas adequadas, suficientes e eficazes, capazes de reverter as causas geradoras de sua necessidade, ainda que possam também vir para sua mitigação ou redução. A proteção de defensores/as de direitos humanos é parte da atuação integral em direitos humanos.  

A proteção também pode e precisa ser uma política pública, expressão do reconhecimento da sociedade e, portanto, ação de Estado, para garantir que a atuação de defensores/as de direitos humanos seja realizada em ambiente e em condições que lhe sejam favoráveis. Ela também é atuação de relevância pública e um serviço ao bem comum, por isso suscetível de investimento público em programas e ações protetivas especificas, especializadas e profissionalizadas.  

A prática da proteção é, acima de tudo, uma herança da ação das próprias organizações de direitos humanos, dos próprios movimentos e organizações populares, que desde sempre a fazem como parte de sua atuação. E a fazem como proteção popular de defensores/as de direitos humanos, dos/as militantes e lutadores/as. Os movimentos, organizações e articulações desenvolvem modos próprios para o cuidado dos seus/suas. Ali é que está a fonte da proteção e é bebendo dela que se criarão as melhores estratégias, os melhores processos, as melhores metodologias e procedimentos para efetivar a proteção que combine práticas de autoproteção com práticas de proteção recíproca e de proteção solidária. Práticas populares não excluem, mas podem se complementar com práticas institucionais.  

A prática da proteção de defensores/as de direitos humanos é motivada pela indignação com todas as formas de violência e de violação, mas também pela solidariedade com todos/as que levam adiante as causas populares. Na raiz dela está a justa ira. É ela uma prática de resistência, própria dos/as que são injustiçados/as, dos/as que são perseguidos/as, traídos/as e enganados/as. A justa ira sustenta um direito, que também se converte em dever: de rebelar-se contra os autores da injustiça, da perseguição, do risco.  

A justa ira é motivadora da responsabilização, não estritamente retributivista, mas também a reparação e a restauração. Construir processos nos quais aqueles que são agentes do risco à vida dos/as defensores/as de direitos humanos e, também, aqueles que dele se beneficiam, ganhando dinheiro direta ou indiretamente com ele, sejam responsabilizados é um dos maiores desafios para que a proteção enfrente as causas de sua necessidade e possa chegar à vida de defensores/as de direitos humanos.  

Assim que, proteger a quem protege, defender a quem defende, cuidar de quem cuida é caminho fundamental para que a vida seja promovida com o máximo de força, que seus caminhos sejam empotenciados, que a abundância seja alcançada pela partilha. Sejamos agentes de proteção popular, sejamos agentes de realização do cuidado da vida, de todas as vidas, construindo relações justas e que respeitem e promovam a dignidade e os direitos.

* Doutor em filosofia (Unisinos), membro da coordenação nacional do Movimento Nacional de Direitos Humanos (MNDH Brasil), coordenador do Projeto Sementes de Proteção.

** Advogada, membro da coordenação colegiada da Sociedade Maranhense de Direitos Humanos (SMDH/MNDH), coordenadora do Projeto Defendendo Vidas e Garantindo Direitos Expropriados.

*** Leia outros textos da coluna Direitos e Movimentos Sociais. Autores e autoras dessa coluna são pesquisadores-militantes do Instituto de Pesquisa, Direitos e Movimentos Sociais, movimento popular que disputa os sentidos do Direito por uma sociabilidade radicalmente nova e humanizada.

**** Este é um artigo de opinião. A visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato.

Edição: Glauco Faria