As denúncias de assédio sexual contra o ex-presidente da Caixa Econômica Federal Pedro Guimarães remetem a um comportamento coletivo que se estende a outros integrantes do governo de Jair Bolsonaro (PL), inclusive ao próprio presidente, que relega as mulheres a uma posição de subordinação e inferioridade.
Sônia Coelho, assistente social, integrante da equipe da Sempreviva Organização Feminista (SOF) e militante da Marcha Mundial das Mulheres (MMM), afirma que as denúncias contra o ex-presidente da Caixa "são parte de um modo de governar com misoginia, com preconceito, com discriminação, com violência contra as mulheres".
Tendo em vista o modus operandi de Bolsonaro, o caso das denúncias de assédio sexual contra Guimarães é "simbólico", na visão de Tânia de Oliveira, historiadora, advogada e integrante da Coordenação Executiva da Associação Brasileira de Juristas pela Democracia (ABJD).
"Nós temos um presidente da República que foi eleito dando discurso misóginos. Então todos esses fatos têm uma raiz e uma origem comum, que é o discurso do dirigente da nação induz que induz a comportamentos, inclusive institucionais, machistas, misóginos e deslegitimadores direitos das mulheres”, diz.
A misoginia fica explícita em um dos relatos divulgados pelo portal Metrópoles, em que uma das servidoras públicas assediadas por Guimarães afirma que o ex-presidente do banco estatal sempre falava: "Vai vir o Long Dong, vai entrar pelo c. e sair pela boca". Long Dong é um ator de filmes pornográficos. "É muito assustador", disse a funcionária.
O comportamento autoritário e grosseiro de Guimarães também ficou explícito em gravações. "Caguei para a opinião de vocês, porque eu que mando. Não estou perguntando. Isso aqui não é uma democracia, é a minha decisão", diz em um áudio. "Manda todo mundo tomar no c.", diz em outro. Entre os áudios divulgados, Guimarães, num rompante falocêntrico, chama Álvaro de Ávila Pires, consultor da Presidência na Caixa, de "pau mole". Segundo Guimarães, Pires não teria coragem de anotar o CPF dos funcionários que estavam em uma conferência, caso as informações da reunião vazassem.
Misoginia como elemento central do governo
Sônia Coelho relembra o posicionamento do presidente Jair Bolsonaro e seus apoiadores no caso da menina de 11 anos estuprada e impedida de realizar o aborto legal. Na ocasião, o capitão reformado disse: "minha posição: tenho uma filha de 11 anos. Espero que não aconteça nada com ela. Mas se acontecesse, eu queria que a criança ficasse viva", em entrevista ao programa 4x4 no Youtube. "Eu acho que não tem lei que pode dizer que o aborto foi legal. A condição que ela estava, com 7 meses, não podia se falar em aborto. Em hipótese alguma. Não se encaixa nessa questão. No sétimo mês de gravidez?"
Para ela, Bolsonaro, antes mesmo de assumir a Presidência já era "uma pessoa intolerante, violenta, que reproduzia a violência contra a mulher". O ataque do então deputado federal a Maria do Rosário (PT-RS), também deputada, em dezembro de 2014. Na ocasião, Bolsonaro disse que "ela não merece [ser estuprada] porque ela é muito ruim, porque ela é muito feia, não faz meu gênero, jamais a estupraria. Eu não sou estuprador, mas, se fosse, não iria estuprar porque não merece".
Assim, não houve surpresa na revelação dos assédios na Caixa, uma vez que seu governo "justamente põe em prática esse lado violento e misógino. O que a gente está vendo em todo o governo dele, para além do aprofundamento das desigualdades, é essa coisa muito forte do acirramento do patriarcado e do acirramento da misoginia como uma coisa muito central", diz Coelho.
"Desde o início, a gente viu um governo que não colocou mulheres no seu governo, que falou abertamente o tempo todo com frases reproduzindo a violência, não só do ponto de vista ideológico, mas do ponto de vista de recursos mesmo, de não colocar recursos, de não executar recursos para nenhuma política em relação às mulheres", completa.
Ainda na esteira do caso da menina de 11 anos estuprada e impedida de realizar o aborto legal, Tânia de Oliveira lembra que o Ministério da Saúde realizou uma audiência para convidados para discutir uma cartilha com o objetivo de modificar as diretrizes constitucionais do aborto legal. Qualquer mudança realizada dessa forma seria inconstitucional, uma vez que uma norma da pasta não tem o poder de alterar uma legislação.
"Além dessa questão de principio logicamente ilegal, eles utilizaram todo esse aparato do serviço público para dizer que vão elaborar uma cartilha para limitar o direito das mulheres ao aborto legal", afirma Oliveira.
"Quem está no comando da orquestra dá o tom"
Nas palavras de Isabela Castro de Castro, presidente Estadual da Comissão da Mulher Advogada da Ordem dos Advogados do Brasil de São Paulo (OAB/SP) e membro fundadora da Comissão Nacional do Feminismo da Associação Brasileira de Advogados Trabalhistas (ABRAT), "quem está no comando da orquestra dá o tom".
"É claro que o tom dele [de Bolsonaro] é conservador. Ele vai colocar nos cargos pessoas que têm o mesmo entendimento que ele. As pessoas que vão estar dançando no mesmo ritmo", diz Castro.
Com o discurso legitimador de falas e ações misóginas, "há a presunção de que esse é o entendimento do governo". Por isso, "muitos vão acobertar tudo o que acontecer, vão engavetar as denúncias, como estava acontecendo até agora na Caixa Econômica". Nos relatos contra Pedro Guimarães, as vítimas disseram que tentaram realizar denúncias na Corregedoria do banco estatal, mas nada foi feito. Pior: algumas passaram a ser perseguidas.
Histórico
As declarações citadas não foram as únicas vezes que Bolsonaro e seus aliados demonstraram misoginia e um apelo falocêntrico, ou seja, a ideia de um autoritarismo masculino, na qual o falo tem um valor significativo.
Em maio de 2019, Bolsonaro prometeu deixar o cargo caso fosse aprovada uma Reforma da Previdência "de japonês". "Se for uma reforma de japonês ele vai embora, é isso? Eu já respondi. Pequenininho. Lá (no Japão) é tudo miniaturizado."
Um mês antes, o presidente disse que o país não poderia ter "turismo gay", mas quem quisesse "vir aqui fazer sexo com uma mulher, fique à vontade."
Em 2014, o capitão reformado disse que tem "pena do empresário no Brasil" com "tantos direitos trabalhistas". "Entre um homem e uma mulher jovem, o que o empresário pensa? Poxa, essa mulher está com aliança no dedo, daqui a pouco engravida, seis meses de licença-maternidade", disse durante entrevista ao jornal Zero Hora.
Seus aliados também não fogem do script. Em setembro de 2019, o ministro da Economia Paulo Guedes se dispôs a dizer que Brigitte Macron, esposa do presidente da França, Emmanuel Macron, era "feia mesmo".
No mesmo ano, Ernesto Araújo, ex-ministro das Relações Internacionais, disse que "hoje um homem olhar para uma mulher já é tentativa de estupro". Também afirmou, durante audiência na Câmara dos Deputados, que as denúncias de abusos sexuais teriam um fundo ideológico. "Não é de forma nenhuma negar o problema do estupro, isso tem que ser combatido como todas as formas de violência, mas é expulsar a ideologia desse tipo de debate."
O discurso de inferiorização da mulher também foi a tônica de Damares Alves, ex-ministra da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos. Em abril de 2019, ela afirmou que "a mulher deve ser submissa. Dentro da doutrina cristã, sim. Dentro da doutrina cristã, lá dentro da Igreja, nós entendemos que um casamento entre homem e mulher, o homem é o líder do casamento."
Edição: Thalita Pires