Propor novos caminhos para a segurança não significa proteger criminosos mas respeitar protocolos
A operação policial na Vila Cruzeiro, que causou 23 mortes no mês passado, e a destruição de memorial em homenagem aos mortos da chacina da favela do Jacarezinho, ocorrida no mesmo mês, mostram que as grandes operações policiais e o direito à segurança pública caminham cada vez mais em sentidos opostos.
Operação virou sinônimo de política de segurança pública, relativizando-se a dignidade humana, o direito à vida e o devido processo legal.
Existe, ainda, uma tendência em promover a confusão entre a governança da segurança pública e os detalhes operacionais e sigilosos da atividade investigativa. Como consequência, a lógica do segredo na atuação das forças de segurança afasta a possibilidade de regras transparentes e de mecanismos eficazes de controle social.
Não bastasse a blindagem que circunda a política de segurança, a homenagem às vítimas da violência de Estado é tida como um crime a ser combatido, reavivando a estigmatização e a violência sobre pessoas e comunidades pobres e negras que sofrem os impactos desproporcionais da política.
Como observa Luiz Eduardo Soares, a arquitetura das instituições de segurança pública, sobretudo o modelo policial, preservou o formato organizacional que elas já possuíam no período da ditadura militar e não houve um olhar mais acurado acerca do horror das práticas e dos crimes daquele período, fazendo perpetuar uma organização muito fechada e pouco transparente ao povo, inviabilizando o seu controle.
O campo da segurança pública tem sido marcado, assim, pela persistência de instituições herméticas e por um baixíssimo grau de prestação de contas sobre o que se pretende fazer ou acerca do que já se realizou.
Os números alarmantes, a falta de respostas e a etiquetagem de certas populações afligem qualquer pessoa que queira estudar seriamente os dados. Impõe-se reconhecer a gravidade do problema e as dificuldades em acreditar que o Estado de Direito vigora no Brasil quando lidamos com um cenário em que as leis devem ser prospectivas, mas selecionam; a universalidade é particular; e os invisíveis de sempre são os destinatários da norma penal.
Em contraponto a essa visão, a segurança pública deve ser entendida como um direito fundamental, garantido pelo art. 5º da Constituição, cujo conteúdo pressupõe não apenas o respeito à integridade física e à vida, mas também o seu entrelaçamento com a realização de políticas públicas e direitos que garantam o bem-estar das pessoas e das comunidades, mediante o respeito às suas liberdades, à igualdade e a direitos sociais, como saúde e educação.
Além disso, o direito à segurança deve ser construído mediante procedimentos democráticos, rompendo a lógica repressiva do tratamento acerca do tema.
A legitimidade democrática deve ser objeto de crivo do sistema de justiça, com atuação efetiva do Ministério Público e do Judiciário. O papel desses órgãos é fundamental para identificar se os procedimentos de governança de segurança estão adequados aos anseios das comunidades. Embora o segredo deva ser observado em certos momentos da atividade investigativa, ele não pode ser utilizado como salvo-conduto para a falta de transparência da própria política.
Propor novos caminhos para a segurança não significa proteger criminosos ou revelar sigilos de investigação, mas estabelecer e respeitar protocolos adequados na concretização desse direito. Só assim poderemos reconhecer os equívocos de políticas herdadas de passado autoritário e afastar a “acumulação social da violência” que tanto se impregnou entre nós.
**Este é um artigo de opinião. A visão das autoras não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato.
Edição: Mariana Pitasse