No assédio institucional, o alvo é a própria instituição pública e suas missões institucionais
Os terríveis assassinatos de Dom Phillips e Bruno Pereira, no Vale do Javari, chocaram o Brasil de várias formas e por várias razões. São fatos que escancaram uma política de destruição, desmatamento, extermínio de populações originárias e de ativistas de direitos humanos, pesca predatória e ilegal, garimpo em terras indígenas, narcotráfico, crime organizado, desemprego, sucateamento de estruturas administrativas fiscalizadoras, desregulamentação e outras tragédias que têm tornado a Amazônia um território livre para práticas das mais brutais formas de violência e espoliação, em níveis inéditos.
Das várias questões desafiadoras e impactantes que as circunstâncias dos crimes nos obrigam a refletir, uma diz respeito à trajetória da vida de Bruno Pereira, servidor licenciado da Funai: o assédio institucional.
Bruno foi dedicado servidor da Funai, na qual ingressou por concurso público em 2010. Indigenista experiente considerado um dos maiores especialistas em povos isolados chegou a assumir a Coordenação Geral de Indígenas Isolados e de Recente Contato, quando participou, em 2019, de uma ação coordenada de fiscalização de garimpeiros ilegais no Vale do Javari que resultou na destruição de 60 balsas que se encontravam ilegalmente na Terra Indígena. Segundo dados do Centro de Trabalho Indigenista “o Vale do Javari abriga o conjunto mais expressivo de povos/grupos indígenas isolados de que se tem conhecimento em uma mesma terra indígena e seu entorno no Brasil”. Após essa ação, Bruno passou a sofrer uma série de perseguições e retaliações no âmbito da Funai, até sua exoneração do cargo em comissão e sua substituição, naquele mesmo ano, por um missionário.
Sem condições efetivas para desempenhar suas funções na Funai, Bruno optou por requerer uma licença não remunerada e continuar o trabalho que vinha realizando como assessor da Univaja – União dos Povos Indígenas do Vale do Javari. Ao realizar esse trabalho sem uma estrutura de segurança e proteção institucionais pelo Estado, Bruno e Dom acabaram vitimizados pelos brutais assassinatos que causam uma multiplicidade de afetos: tristeza, indignação, perplexidade, medo, raiva e a terrível certeza de que o Brasil está perdendo seus melhores quadros para a violência, o ódio, o exílio.
A trajetória de Bruno na Funai é um símbolo daquilo que mais recentemente vem sendo denominado de “assédio institucional”. O conceito é de autoria de José Celso Cardoso Junior e Frederico Barbosa da Silva e “abrange comportamentos provindos de superiores hierárquicos, revelados em seus aspectos objetivos e subjetivos, que constituem ataques às organizações públicas ao afetar suas missões e suas funções”. Esses ataques podem se materializar das mais diversas formas, tais como “ameaças, cerceamentos, constrangimentos, desautorizações, desqualificações e deslegitimações voltadas às atividades institucionais”. Ou seja, enquanto as formas já conhecidas do assédio moral revelam-se, na maior parte dos casos, como manifestações de violência direcionada ao indivíduo, no assédio institucional, o alvo é a própria instituição pública e suas missões institucionais. Nesse aspecto, são comuns as narrativas de pessoas que sofreram assédio institucional e que revelam a intenção de gestores em levar a instituição a uma situação de inoperância tal que favorecesse a construção de argumentos em favor de sua extinção ou da diminuição substancial de sua estrutura.
Tais práticas se inserem num contexto maior em que as instituições são utilizadas de forma autoritária, sob o influxo da nova ordem neoliberal mundial com os contornos que a extrema direita brasileira lhe emprestou. A excelente publicação “Assédio Institucional no Brasil: avanço do autoritarismo e desconstrução do Estado”, da Afipea – Associação dos Funcionários do Ipea e da Universidade Estadual da Paraíba investiga e aprofunda esse contexto e traz os elementos conceituais indispensáveis para a compreensão dessa nova forma de assédio que ganhou força nas instituições da administração pública federal.
A identificação do assédio institucional, fenômeno inaugurado em 2016, mas que alcança maior escala a partir de 2019, baseia-se em evidências coletadas no “Assediômetro”, instrumento criado em 2019 pela Afipea-Sindical que registrou dados acerca de centenas de casos. Frederico Barbosa da Silva, José Celso Cardoso Jr e Victória Evellyn C. M. Sousa identificam “três movimentos discursivos característicos das práticas em curso atualmente, a saber: i) liberalismo econômico radical; ii) desconstrução deliberada das institucionalidades e organizações públicas; iii) gramática da política como guerra híbrida contra o inimigo”.
Dessa forma, uma das dimensões discursivas do assédio institucional necessita eleger o servidor público que desempenha suas funções de acordo com a finalidade da instituição como inimigo. Nessa perspectiva, o assédio se transmuta em método de governo, causando impactos reais, não apenas na saúde mental do servidor implicado, mas também no funcionamento normal das instituições.
Dito isso, é induvidoso que a conjuntura que compeliu Bruno a se licenciar da Funai pode ser qualificada como assédio institucional, como parte de um quadro de ataque à própria instituição, às suas funções, às suas finalidades e às políticas públicas de proteção aos povos indígenas e seus territórios.
A trajetória de Bruno é emblemática, um símbolo do projeto de assédio institucional, desmonte, sucateamento e destruição, por dentro, das estruturas administrativas voltadas ao desenvolvimento de políticas públicas de concretização de direitos sociais fundamentais. Nesse sentido, o que aconteceu com a Funai também aconteceu com a Fundação Palmares, com o Ibama, com o INPE, com o INSS, com o SUS, com o IBGE, com a fiscalização do trabalho, com a cultura, com a educação, com a universidade pública e gratuita e todos os serviços públicos voltados ao povo, estrangulados pelo aperto de morte do teto de gastos e inoculados com o vírus mortífero do neoliberalismo e do “estado mínimo”.
Mais do que reconstruir as estruturas administrativas devastadas e recuperar os fundamentos das políticas públicas essenciais para garantia de direitos fundamentais, é preciso reparar e reverter os danos impostos a todo um corpo funcional que foi perseguido, constrangido, silenciado e ferido em seu senso de dever deontológico e cívico, de devotamento ético ao serviço público de qualidade destinado à sofrida população brasileira.
Tarefas onerosas, mas não impossíveis.
Nesse quadro de profunda agonia, o Brasil foi privado das presenças físicas de Dom Phillips e de Bruno Pereira. Mas o legado de ambos pode ser representado lindamente pela cena do canto indígena que Bruno entoou, sentado na floresta, sorrindo, feliz, entre os indígenas a cuja proteção e luta por dignidade, dedicou sua vida. Esse canto, que vai ecoar eternamente, nos contagia e nos lembra, com Thiago de Mello, que “faz escuro, mas eu canto, porque a manhã vai chegar”.
*Cláudia Maria Dadico é Doutora em Ciências Criminais pela PUC-RS, juíza federal, integrante da Associação Brasileira de Juristas pela Democracia (ABJD) e da Associação Juízes para a Democracia (AJD).
Edição: Glauco Faria