Em 2019, em pleno carnaval, a Secretaria de Estado de Polícia Militar do Rio de Janeiro, sob comando do governador Wilson Witzel (PSC), implementou projeto-piloto para videomonitoramento por reconhecimento facial. As câmeras, instaladas inicialmente no bairro de Copacabana, logo chegaram aos entornos do estádio do Maracanã e do aeroporto Santos Dumont, na região central da cidade.
Aquele que mandava “mirar na cabecinha”, se foi. E se era possível piorar os riscos e ameaças à população fluminense, especialmente pretos e pobres favelados, o seu substituto conseguiu a proeza. Cláudio Castro (PL), que não se sabe em quantas cabeças autoriza que suas polícias mirem para acertar, infla o peito para anunciar a instalação de câmeras de vigilância exatamente na combalida comunidade do Jacarezinho, palco da chacina mais letal de que se tem notícia em território fluminense, que resultou em lastimáveis 28 mortes.
É sobre vulnerabilidades de políticas de segurança pública que precisamos falar.
Como bem define o projeto Panóptico, desenvolvido pelo Centro de Estudo de Segurança e Cidadania para acompanhar e analisar o uso do reconhecimento facial pelas polícias fluminenses, tratam-se de “olhos seletivos”. São olhos também cruéis e perversos, eu acrescento os adjetivos. Segundo dados do próprio CESeC cerca de 90% das pessoas presas com o uso dessa tecnologia eram negras.
Em apenas um ano, desde que Cláudio Castro assumiu o lugar do deposto Wilson Witzel, foram registradas 182 mortes em 40 chacinas. Doze meses após a tragédia no Jacarezinho, a comunidade da Vila Cruzeiro, na Zona Norte da capital, teve de enterrar 23 vítimas. Responsável pelos massacres que nos afetam a todos, o governador, mirando a eleição e a permanência no cargo, lançou o projeto Cidade Integrada, a partir do qual pretende instituir as tais câmeras de vigilância no Jacarezinho.
Segundo anunciado, serão 22 duas câmeras, das quais quatro terão a função de reconhecimento facial. Sob o pretexto de dar segurança - e com isso obter votos -, estima gastar R$ 493.288,20 apenas para o videomonitoramento. E o que é possível fazer com tanto dinheiro é assunto que também precisamos discutir em quaisquer ocasiões.
O tema da proteção de dados e privacidade é relativamente novo no Brasil.
Passou a ser mais discutido a partir dos debates sobre a Lei 13.709, a Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais (LGPD), de 14 de agosto de 2018, que teve repercussões, sobretudo, na esfera empresarial. O grande referencial para o estudo desse tema é o Regulamento EU 2016/679, do Parlamento Europeu e do Conselho, que entrou em vigência plena em maio daquele mesmo ano. Conhecida como Regulamento Geral de Proteção de Dados (RGPD, em português; ou GDPR, em inglês), essa norma resulta de um acúmulo de muitas décadas de produção acadêmica, processos judiciais e muitas outras experiências nos países da União Europeia.
Por conta desse longo caminho percorrido, o RGPD traz um longo texto, com 99 artigos bem detalhados, no qual se encontram uma grande quantidade de ideias bem amadurecidas e precisas. Antes dos artigos do regulamento, há um elenco de 173 considerações que introduzem o documento e fornecem não só uma boa chave de leitura do que vem em seguida, mas também a consolidação de compreensões que podem servir para o estudo do tema em todo o mundo.
Se as interfaces de reconhecimento facial promovem ganhos e euforia no setor privado, na esfera pública, por sua vez, a sofisticação da tecnologia pode se transformar em requinte de crueldade com alvo certo, assim como avança a insegurança jurídica. Estão em jogo a inviolabilidade da moral, da não garantia do direito de ir e vir, a ameaça de que o controle social massivo e opressivo trará uma ideia de vigilância permanente e constante.
Não à toa, 50 parlamentares, em 15 estados, nas esferas municipal e estadual, estão apresentando, a partir de hoje, projetos de lei para banir o reconhecimento facial em espaços públicos. É urgente que façamos barulho sobre o tema, é crucial que a prática seja banida em todo o país.
*Dani Monteiro e deputada estadual (Psol/RJ) e presidente da Comissão de Defesa dos Direitos Humanos e Cidadania da Alerj.
**Este é um artigo de opinião. A visão das autoras não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato.
Edição: Mariana Pitasse