Há uma falsa ideia de que apenas defender valores cristãos evangélicos é o suficiente para garantir o voto desse eleitorado, segundo pesquisadoras ouvidas pelo Brasil de Fato. Porque o "eleitor evangélico" é um grupo bem variado, outros valores entram na conta, como a situação econômica, segurança pública, políticas de acesso à educação e pautas de financiamento e de fomento social também são questões levadas em consideração.
Viviane Costa, pastora pentecostal e pesquisadora das relações entre religião e poder nas periferias cariocas, explica que o voto evangélico é determinado por outros fatores, além da religião, como raça, classe, gênero e região. “Esse é um primeiro ponto para conseguir entender qual é essa identidade múltipla que os evangélicos têm e suas diferentes demandas.”
Em outras palavras, os cristãos evangélicos são uma população heterogênea. Isso significa que o que para determinada parcela é prioridade na hora de escolher um candidato; para outra, o mesmo assunto nem sempre é relevante. Trata-se de “um voto evangélico, mas também do voto de um pobre ou uma pobre, de um negro ou uma de uma negra, de um homem ou de uma mulher. Partindo disso, a gente precisa olhar quais pauta unem parte desses evangélicos”, afirma Costa.
Família e igreja
Segundo Magali Cunha, pesquisadora de mídias, religiões e política do Instituto de Estudos da Religião (Iser) e colaboradora do Conselho Mundial de Igrejas, os temas que envolvem as esferas familiares geralmente são comuns a todos os evangélicos, porque a família representa “segurança, estabilidade, afeto e unidade”.
Por exemplo, existem valores caros ligados à ideia de prosperidade que vão além do dinheiro, mas englobam, por exemplo, uma família em segurança, o filho longe do tráfico de drogas, um emprego para o marido e um bom destino para a filha.
“Em 2013, quando Marco Feliciano foi eleito presidente da Comissão de Direitos Humanos da Câmara dos Deputados, a pauta de ameaça à família já estava colocada, passando pela questão da sexualidade, das drogas, da ideológica – e aí entra feminismo, o empoderamento de mulheres, a juventude com a autonomia para pensar”, afirma Cunha.
Com esses valores na mesa, as questões foram “deturpadas a partir de um pânico moral, de criar medo nas pessoas de que a educação sexual vai perverter e erotizar, de que a descriminalização do aborto vai fazer com que as mulheres ‘saiam matando as crianças que geram’, de qualquer discussão sobre drogas significar que os filhos serão drogados. Isso tem um apelo muito grande por conta do medo, e o medo afeta muito”, diz Cunha.
É nesse sentido que questões como educação sexual e descriminalização e regulamentação do uso de drogas e flexibilização da posse de armas de fogo giram em torno da proteção da família. “Quando a gente pensa em família, está falando no sentido mais abrangente da palavra. Não é só a sexual, mas também quando se fala de educação sexual nos ambientes de educação. Então quando falo de educação sexual, há uma associação à ameaça da ‘ideologia de gênero’, que pode desvirtuar as crianças”, complementa Viviane Costa.
Seguindo por este raciocínio, Costa afirma que “a família é tudo o que essas pessoas têm”, bem como a igreja. Da mesma maneira, a perseguição contra a igreja “aparece como uma pauta que mobiliza afetos, que são muito importantes para essas pessoas que vivem nesses lugares de pobreza, porque não se tem riqueza nesses lugares. A única riqueza é a família, é a igreja, que é onde se constituem as redes de afeto e de apoio nesses lugares de pobreza, onde o Estado não chega. É muito mais no sentido de instrumentalização do que manipulação”.
Salvador
Por essa perspectiva, é comum que candidatos a cargos públicos incentivem os medos e as ameaças mobilizando as pautas ligadas a família. Eles também se apresentam como um caminho de proteção.
Não à toa, o presidente Jair Bolsonaro (PL) sempre trouxe o elemento religioso para o seu discurso. Durante um culto evangélico da igreja neopentecostal Sara Nossa Terra, do bispo e ex-deputado Robson Rodovalho, Bolsonaro afirmou que o "Estado pode ser laico”, mas que os brasileiros são “cristãos”. “No meu governo, a família terá a atenção e o respeito que merece", disse ainda em julho de 2019.
Em maio deste ano, durante a Marcha para Jesus pela Família e pelo Brasil, o capitão reformado reforçou as ameaças à família cristã e se colocou novamente como aquele que pode combater tais ameaças.
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“Nós respeitamos as nossas crianças em sala de aula. Nós somos contra a liberação das drogas. Nós sabemos o que queremos. Temos um Senhor que é um Senhor de todos nós e, como dito aqui, somente com Ele atingiremos o nosso objetivo. Nós sabemos o que o outro lado quer fazer. Nós sabemos já o que eles fizeram no passado e nós não queremos retornar a essa época sombria, onde imperava a corrupção, o desmando e o ataque à família brasileira”, disse.
Uma das questões que une boa parte dos evangélicos é a liberdade religiosa. “O discurso evangélico de pregação, partindo do texto bíblico, é de que no fim dos tempos os evangélicos seriam perseguidos e impedidos de pregar a palavra”, diz Viviane Costa. Nesse sentido, quando um evangélico diz algo e é repreendido por isso, há uma interpretação ligada a esse sentimento de perseguição. Este elemento se liga à ideia da perseguição contra a igreja.
Também não é à toa que Bolsonaro afirmou, durante a Marcha para Jesus pela Família e pelo Brasil, que os cristãos darão a vida pela “liberdade” e que repudiam “todos aqueles que, por ocasião da pandemia, fecharam igrejas e templos”. “O respeito à religião, à liberdade de expressão e à nossa liberdade maior não tem preço.”
Violência e santificação
Viviane Costa fala também sobre a ameaça que existe à família no âmbito da segurança pública. “Por exemplo, se eu estou exposta à violência, quem vai defender minha família? Eu mesmo. E aí a liberação de armas também passa por essa questão de defender a família, porque o Estado não faz isso.” Nesse sentido, aproximando-se dos espectros políticos, Costa afirma que a “pauta armamentista é melhor elaborada pela direita do que pela esquerda em relação aos evangélicos”.
Em 20 de abril, durante um evento de regularização fundiária em Goiás, Bolsonaro disse que “o Brasil é um país cristão. Nós somos contra o aborto, contra a ideologia de gênero, defendemos a família, a propriedade privada e queremos armas de fogo para o cidadão de bem”, associando as pautas à religião. “Todos vocês, cidadãos de bem, sabem que a arma, em especial no local mais distante, é a garantia da vida de vocês. Não se esqueçam: povo armado jamais será escravizado”, arrematou.
Uma declaração do já falecido senador Arolde de Oliveira (PSD-RJ), em entrevista ao O Globo, em janeiro de 2019, assim que Bolsonaro foi eleito, representou satisfatoriamente a defesa que há da posse de armas entre grupos evangélicos. “Se você é a favor da vida, da família, da propriedade, precisa ter condições de autodefesa e a posse é necessária. O porte já é mais complexo. Teria que fazer testes para evitar que o armamento chegue nas mãos de psicopatas e malucos”, disse, fazendo uma referência à segurança da família.
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Ainda que defendam a agenda armamentista em alguma medida, os evangélicos, principalmente as mulheres, adotam cautela em relação ao discurso truculento de Bolsonaro. “As mulheres se afastam do Bolsonaro no discurso violento, na representação de uma boçalidade, de uma civilidade fraca, de um grosseirismo”, afirma Viviane Costa.
Mas até mesmo este ponto é administrado bem pela direita. “O Bolsonaro é casado com uma mulher evangélica, e a mulher evangélica dá a ele uma santificação, porque o marido descrente é santificado pela mulher”, afirma Costa numa referência ao seguinte trecho da Bíblia: “Porque o marido incrédulo é santificado no convívio da esposa, e a esposa incrédula é santificada no convívio do marido crente. Doutra sorte, os vossos filhos seriam impuros; porém, agora, são santos" (1 Coríntios 7:14).
“Muitas mulheres identificam no Bolsonaro a imagem do seu próprio marido que ainda não convertido, ainda que muitas dessas mulheres estão se afastando do Bolsonaro justamente pelo discurso extremamente violento, que passa do discurso da proteção da família para uma violência brutalizada.”
Evangélicos e a direita
É fato que a direita mobiliza melhor as questões e os afetos demandados por certos grupos evangélicos. Não à toa o voto dessa parte do eleitorado foi decisivo para a eleição de Jair Bolsonaro, durante as eleições presidenciais de 2018.
Em um artigo publicado na EcoDebate, logo após o pleito, Eustáquio Diniz Alves, doutor em demografia e professor titular do mestrado e doutorado em População, Território e Estatísticas Públicas da Escola Nacional de Ciências Estatísticas, afirmou que “sem dúvida os evangélicos se transformaram em uma força política decisiva”.
No segundo turno, foram 57,8 milhões de votos para Bolsonaro e 47 milhões para Fernando Haddad. Uma diferença de 10,76 milhões de votos. Olhando para os votos segmentados por religiões, a diferença entre ambos não foi significativa entre os católicos, espíritas e de outras religiões.
A discrepância apareceu entre os votos dos evangélicos: 21,7 milhões para Bolsonaro diante de 9,7 milhões para Haddad, de acordo com pesquisa Datafolha. Uma diferença de pouco mais de 11 milhões votos, próximo dos 10,76 milhões de votos que fizeram o capitão reformado vencer as eleições.
“As pautas que tocam os evangélicos são muito bem instrumentalizadas pela direita, no sentido de que existem identidades e afetos que são muito bem mobilizados”, como as questões colocadas acima.
Evangélicos e a esquerda
Entre determinados grupos evangélicos e a esquerda, no entanto, também existem alguns outros pontos de convergência. Por exemplo, “as pautas de financiamento e de fomento social, acesso à educação, no combate à fome e ao desemprego, exercício de políticas públicas”.
“A direita mobiliza pautas e afetos evangélicos com mais eficiência do que a esquerda. Só que o evangélico não é só evangélico, tem outras marcas de identidade, seja porque é uma mulher preta, seja porque é um homem que não dá mais conta sustentar a família, seja porque esse discurso acaba sendo muito violento”, afirma Viviane Costa.
“Quando a gente pensa que tem evangélicos que estão envolvidos e motivados por questões sociais em defesa da igualdade e da dignidade humana, nesse sentindo, a gente pode colocar que há uma aproximação da pauta de esquerda.”
De acordo com Magali Cunha, a despeito das questões mais ligadas à moralidade, a pauta econômica mexe com os evangélicos porque, assim como todos, “lidam com a sobrevivência, pagam contas, têm que comprar, têm o salário no final no mês, pagam pelo transporte público. Essa pauta da economia em todas as eleições é uma pauta decisiva, principalmente para as pessoas mais pobres, de periferia, mulheres e negras, que são os grupos mais afetados pela carestia”. Em suas palavras, mesmo que esses grupos sejam orientados de alguma maneira dentro das igrejas, por lideranças midiáticas, a realidade da vida se impõe.
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Segundo a pesquisa Diversidade Cristã: Uma análise sobre a pluralidade e a importância da fé na vida dos brasileiros, produzida pelo Grupo Globo, a maioria dos evangélicos são jovens: 40% dos evangélicos têm entre 16 e 34 anos. Cerca de 54% dos religiosos são da classe C (recebem entre R$ 2.005 a R$ 8.640 de renda mensal, segundo o Centro de Políticas Sociais da FGV), 28% da D e E (recebem de R$ 1.255 a R$ 2.004 na classe D e de 0 a R$ 1.254 na classe E).
A maioria também é de mulheres: aproximadamente 58%. Complementando, uma pesquisa do Instituto Datafolha de 2019 mostrou que 59% dos entrevistados evangélicos são negros (pretos e pardos, de acordo com a definição do IBGE).
“Qualquer campanha de oposição ao atual governo deve saber trabalhar o tema da família pelo viés da segurança e da sobrevivência, ultrapassando essa discussão que sempre que se coloca da moralidade, e falar da vida cotidiana, como as famílias são atingidas até mesmo pela educação ambiental, a partir dos riscos de deslizamento, por exemplo. É necessário reverter o direcionamento das pautas para aquilo que realmente importa”, afirma Cunha.
Abismo
Na relação entre a esquerda e alguns grupos, no entanto, existe frequentemente “um abismo” que separa esses dois blocos, na visão da pastora Viviane Costa. Isso porque existem duas esquerdas.
Por um lado, a esquerda não religiosa que é “intolerante” aos evangélicos. Por outro, a esquerda religiosa que tem uma resistência aos pentecostais – em linhas gerais, é a segunda vertente mais recente do cristianismo protestante, que nasceu no Brasil no início do século 20, representada por igrejas como Assembleia de Deus, Evangelho Quadrangular e Deus é amor – que, em sua maioria, estão em um contexto de pobreza econômica.
Ambas as esquerdas, frequentemente, se colocam “muitas vezes nesse lugar de combater os movimentos pentecostais. Aí o abismo é intensificado. Quando a esquerda se afasta dos movimentos pentecostais, em críticas intensas, também se afasta dessas outras marcas de identidade para a religião, aumentando o abismo entre a esquerda e o pobre”, afirma Viviane Costa.
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A pesquisadora acredita que há um certo preconceito das classes média e média alta em relação aos evangélicos, como se votassem com consciência, enquanto os pobres votassem por “ignorância”. Trata-se, no entanto, como já dito acima, de “mobilização de pautas e afetos, que vai além de uma agenda política”.
“A agenda aparece com importância para os evangélicos empresários, os pastores que estão na mídia, ocupando os espaços de poder. Mas e quem está na periferia que nunca vai ocupar aquele espaço de poder? Como essa pessoa é mobilizada? Muitas vezes pelo afeto, não só pela pauta”, questiona Costa.
Edição: Rodrigo Durão Coelho