opinião

Artigo | Comida saudável e segura é direito de todas nós

Embora conhecido pela ONU e pela Constituição brasileira, o direito à alimentação não é realidade para todas as pessoas

Brasil de Fato | Belo Horizonte (MG) |
"Por que milhões de pessoas passam fome ou correm risco de comer alimentos inseguros, mal conservados e apodrecidos?" - Agência Brasília

A data de 7 de junho foi escolhida pela Organização Mundial de Saúde da Organização (OMS) como o Dia da Segurança dos Alimentos. Em resumo, a segurança dos alimentos refere-se à qualidade dos alimentos, ou seja, à ingestão segura e adequada de nutrientes, pensada desde a produção até o consumo, visando à saúde humana e do planeta. Como se vê, desde o campo até a mesa e o descarte, uma série de condições precisam ser respeitadas para que as pessoas tenham acesso seguro aos alimentos.

Uma breve mirada nos alimentos que chegam até nós, considerando as condições de moradia, saneamento e vida da maior parte da população, nos leva a questionar a segurança dos alimentos consumidos no Brasil. Por um lado, tem-se o crescimento dos cultivos de monocultura, baseados em sementes transgênicas e no alto consumo de agrotóxicos - muitos deles proibidos em outros países do mundo. Por outro, as condições precárias de conservação e manipulação dos alimentos. A falta de saneamento básico compromete o abastecimento e qualidade da água. O alto preço da energia e do gás de cozinha têm levado muitas famílias a desligarem geladeiras e eletrodomésticos e a cozinharem à base de lenha - ou a comerem alimentos crus ou mal cozidos. Para quem vive nas ruas, frequentemente, a única possibilidade de comida é encontrada nas latas de lixo. A probabilidade de contaminação desses alimentos é altíssima. 

Para o país que saiu do Mapa da Fome das Agências da ONU para Agricultura e Alimentação (FAO), em 2014, e passou a ser referência na área da segurança e soberania alimentar e nutricional, o retorno do flagelo da fome é uma grande violência e fonte de angústia e dor coletivas. De fato, embora conhecido pela ONU e pela Constituição brasileira, o direito à alimentação não é realidade para todas as pessoas no mundo e no Brasil. 

Dados anteriores à pandemia apontavam que uma em nove pessoas do mundo passavam fome ou estavam em situação de insegurança alimentar. Em todo o mundo, eram mais de 2 bilhões de pessoas com deficiência de micronutrientes e 690 milhões com má nutrição crônica.  No Brasil, dados recentes indicam que a fome quase dobrou durante a pandemia. Enquanto, no fim de 2020, 19,1 milhões de pessoas passavam fome a cada dia, atualmente, são 33,1 milhões de brasileiras e brasileiros nessa condição, identificada como insegurança alimentar grave. São mais de 125,2 milhões de pessoas vivendo em domicílios com algum grau de insegurança alimentar - o que corresponde a 60% de toda nossa população. 

De fato, "não dá pra esconder, não dá pra aceitar". 

O mais contraditório de tudo isso é que vivemos no país aclamado como "celeiro do mundo", onde o "agro é tudo" e dia após dia divulga manchetes de jornal destacando safras recordes de alimentos. Por que, então, a conta não fecha? Por que milhões de pessoas passam fome ou correm risco de comer alimentos inseguros, mal conservados e apodrecidos?

E, ainda, por que, diante da fome que assola países do Sul Global, convivemos com uma taxa mundial de desperdício de mais de 30% dos alimentos no caminho que vai do campo à mesa, da produção ao consumo? 

As razões para tamanha calamidade são muitas, são históricas e são estruturais. Têm a ver com a matriz de desigualdades que organizam nossas sociedades e hierarquizam seres humanos segundo aspectos de raça, gênero, classe, uso e ocupação das terras (rurais e urbanas), acesso à educação de qualidade. Um dado que nos dá a dimensão do problema é o fato de que a Lei de Terras do Brasil (de 1850) veio antes da abolição da escravatura. O tempo não curou essa chaga e a desigualdade fundiária segue relevante: as propriedades rurais com mais de 2,5 mil hectares são apenas 0,3% das unidades e ocupam 32,8% das terras rurais de nosso país. A desigualdade de gênero também se faz sentir, haja visto que apenas 19% das cerca de cinco milhões propriedades rurais brasileiras são comandadas por mulheres. 

A concentração das terras, o avanço da monocultura agrícola e da pecuária sobre as matas e biomas como Mata Atlântica, Cerrado, Amazônia e outros e o próprio funcionamento do chamado sistema agroalimentar hegemônico contribuem para o aumento da fome, do desperdício e da insegurança alimentar. 

Todos esses problemas têm em comum o aspecto da desconexão, dos distanciamentos entre seres humanos e entre nós e a natureza. Tomemos o sistema agroalimentar, composto pelo conjunto de atividades e atores, privados e públicos, ligados à produção, transformação, distribuição, consumo e descarte de alimentos. Um elemento chave de seu funcionamento corresponde às grandes distâncias que separam produtores e consumidores de alimentos. Isto é, a comida viaja milhares de quilômetros no Brasil e frequentemente atravessa oceanos para chegar às gôndolas de grandes supermercados - quantos intermediários não lucraram com o processamento e o transporte desses alimentos? Outro aspecto associado à desconexão é o empobrecimento de nossa cultura alimentar. Com o aumento do consumo de ultraprocessados, nossa dieta está cada vez menos diversa e nutritiva. 

Ora, se já detectamos que as grandes distâncias são um problema, a solução deve estar na promoção de encontros, de trocas, de pontos de contato, ou seja, no encurtamento das distâncias - físicas e cognitivas entre pessoas e seus territórios

Na agenda da comida, isso significa criar e fortalecer feiras e mercados locais, abastecidos pela agricultura familiar e camponesa; retomar e ampliar políticas de compras públicas, como o Programa de Aquisição de Alimentos (PAA) e o Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE), vinculados à agroecologia; direcionar a pesquisa agropecuária pública para os desafios da agricultura familiar; regulamentar as normas sanitárias da agricultura familiar; incentivar o consumo de alimentos frescos e pouco processados, sobretudo nas periferias urbanas, também chamadas de desertos alimentares; e valorizar a recuperação das receitas e histórias de nossa cultura alimentar. Já a preservação e o manejo dos alimentos nas casas, lanchonetes e restaurantes requer políticas de distribuição de renda, geração de trabalho decente, programas e ações de moradia e saneamento. A saída é coletiva e está ao nosso alcance. Precisamos lutar por ela, nas ruas, nas redes e nas urnas. 

*Luiza Dulci é economista e doutora em sociologia, integrante do Conselho Curador da Fundação Perseu Abramo e constrói o Movimento Bem Viver MG.

**Este é um artigo de opinião. A visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato.

Edição: Felipe Mendes