O desaparecimento do indigenista Bruno Pereira e do jornalista Dom Phillips abalou Maria*. Três anos atrás, ela e a filha estavam na moto de outro indigenista, seu marido Maxciel Pereira dos Santos, quando ele foi morto com dois tiros na nuca na Avenida da Amizade, a principal via pública de Tabatinga (AM). Ocorrido em setembro de 2019, o crime não foi esclarecido até hoje pela Polícia Federal do Amazonas.
O esforço das buscas pelos desaparecidos e a cobrança pública por justiça lhe trouxeram, além da tristeza, um questionamento inevitável. “Por que não fizeram o mesmo sobre o Max? Fiquei muito revoltada. Eu me coloco no lugar da família deles, mas por que deixar a gente de lado?”, perguntou em entrevista concedida à Agência Pública. Maria não é seu verdadeiro nome, ela pediu para não ser identificada dizendo querer evitar o assédio da cobertura jornalística.
Maria conta que conheceu Maxciel em 2015 em uma festa na cidade de Atalaia do Norte (AM). O ex-servidor da Funai assumiu a filha de Maria de outro relacionamento e os dois ficaram juntos até a morte de Max, como era conhecido. Quando ele morreu, o casal morava com a mãe dela e estava para se mudar para uma casa própria em Atalaia. Viviam do trabalho de Max, pois Maria, professora, tinha sido demitida e sua única renda vinha da venda de “Din Din” (também chamado de geladinho ou gelinho em outros cantos do país).
Ela lembra vividamente do dia em que o marido foi assassinado. Era 6 de setembro de 2019 e Max havia acabado de retornar da base de proteção da Funai no posto do Rio Curuçá. “Ele chegou por volta das 9 horas [da manhã]. Eu já estava pronta esperando, a gente pegou a baleeira e descemos o rio, fomos pra Tabatinga. Chegamos lá por volta da uma hora da tarde, fomos pra mãe dele. Saímos para comprar almoço e, quando a gente terminou de almoçar, fomos pra casa do irmão dele, onde a gente ficava hospedado. Ficamos lá descansando até às cinco e meia que foi quando eu senti fome e chamei ele pra ir jantar. Quando a gente saiu, foi coisa de dez minutos e aconteceu a tragédia”, relembra. A voz embarga na hora.
“Quando deram o primeiro tiro eu estava olhando pro outro lado da rua, eu achei que fosse um pneu de um carro que tivesse estourado. Quando eu olhei pro outro lado, eles já estavam emparelhados com a gente com a arma encostada na cabeça do Max. Eu vi a arma na minha frente, mas foi tudo muito rápido. Tão rápido que não deu pra ver se a pessoa tava de capacete, sem capacete. Só deu pra ver a arma apontada para a cabeça do meu marido. Depois dos tiros, a gente foi virando, caindo e já foi todo aquele desespero”, diz.
Maria conta que desde então vem vivendo um martírio. Entrou em depressão, ficou um período sem conseguir sair de casa nem para trabalhar. Para se sustentar, começou a fazer bolos para vender, um trabalho que, segundo ela, acabou sendo terapêutico e do qual sobrevive até hoje.
Maria pouco sabe das investigações sobre a morte de Maxciel, quase tão pouco quanto qualquer pessoa sem acesso às investigações. O indigenista morreu na sexta-feira e ela prestou depoimento na Polícia Federal no dia seguinte. Conta que foram apreendidos dois pen drives e o celular de Maxciel, mas desde então só ouviu falar novamente da investigação quando foi abordada por um agente da Polícia Federal no ano passado pedindo para que ela prestasse um novo depoimento. Ela diz ter confirmado a identidade do agente que a procurou, mas que não teve forças para prestar o depoimento e não foi mais procurada pela PF.
“Max era mais Funai que muito Funai por aí”, afirma ex-colega
Maxciel foi servidor da Funai até o governo Temer, quando medidas administrativas o tornaram apenas um colaborador do órgão. “Ele era muito da equipe, muito do trabalho e a gente continuava pagando ele por diárias, como colaborador eventual. Uma categoria bem frágil, sem direito a nada. Max era mais Funai que muito Funai por aí, não poderia ter sido mandado embora daquele jeito, por uma canetada do Temer e continuou atuando pela Frente de Proteção”, disse à Pública um servidor do órgão que foi colega de Max por cerca de um ano, e pediu anonimato.
As fontes ligadas à Funai ouvidas pela Pública descrevem Maxciel como um servidor rígido, “duro” no serviço. Ex-militar, havia servido à Aeronáutica antes de trabalhar no órgão indigenista. Chegou a ser cotado para coordenador da Frente de Proteção Etnoambiental por influência, inclusive, de Bruno Pereira, o indigenista desaparecido, de quem era muito próximo. Durante anos, atuou como Chefe do Serviço de Gestão Ambiental na Frente de Proteção, o setor responsável pela parte mais operacional das ações de fiscalização.
“Ele era odiado pelos pescadores do Rio Ituí, do Curuçá, fez ações nessa terra indígena todinha. Era um cara bem conhecido na região. Deu muito prejuízo para os pescadores ilegais”, diz outro servidor, também ouvido sob anonimato. Max era famoso por andar sempre com um fardamento da Funai, uma roupa em tons terrosos que lembra uniformes de forças policiais ou das Forças Armadas.
A mesma fonte conta que um pescador da região, que frequentemente pescava em área indígena, chegou a fazer um boletim de ocorrência contra ele por conta de uma ação de fiscalização. “Ele tava muito injuriado na base uma vez comigo que ele tinha recebido uma intimação”, relata. O pescador alegou que Max teria sido duro no trato com o pai dele. Consultadas pela Pública, nenhuma das fontes atribuiu episódio de agressão física a Maxciel.
Perguntado se a morte do indigenista estaria relacionada a essas ações de fiscalização, Almério Alves Vadique, o “Kel”, integrante do Cimi (Conselho Indigenista Missionário), ex-servidor da Funai, e a amigo de Max é taxativo: “Com certeza. Porque já tinham falado na rua aqui que iam matar ele”, relata. A irritação dos pescadores com Maxciel, e mesmo com Bruno Pereira deve-se, em parte, à destruição de equipamentos em áreas protegidas, uma reclamação comum de infratores ambientais contra servidores da área socioambiental. A viúva de Max também acredita na relação entre sua morte e o trabalho de fiscalização e cita um episódio específico. “Uma vez a gente estava comendo em um restaurante em Benjamin [Constant, município vizinho a Atalaia do Norte]. Ele virou pra mim e disse: ‘Nega, bora sair daqui porque aquele cara ali tá me olhando’”, relembra Maria. O “cara”, segundo ela, seria um dos alvos de uma ação de fiscalização realizada por Maxciel.
Uma dessas operações, coordenada pela Polícia Federal, chegou a ser relacionada diretamente com o assassinato por fontes próximas ao indigenista. Max morreu três dias antes de ela ser realizada, mas ele havia participado de todo o planejamento das ações junto com Bruno Pereira. Trata-se da Operação Korubo, focada no combate ao garimpo ilegal no rio Jutaí entre os dias 9 e 13 de setembro de 2019, quando 60 agentes da PF, Funai e Ibama afundaram dezenas de balsas. A operação teve participação decisiva de Pereira.
“Bruno foi quem articulou a Operação Korubo, foi o principal responsável. Foi a operação mais bem sucedida da Polícia Federal de combate ao garimpo. A gente utilizou uma metodologia nova, de satélite, a gente não fez o sobrevoo como em outras operações, chegamos com força total porque já estava mais ou menos plotado pelo Bruno”, afirmou um delegado ligado à operação que não quis se identificar.
Apesar das datas próximas entre a ação da PF e o assassinato de Maxciel, “Kel” não acredita que esse possa ter sido o estopim de sua morte. “Essa operação não foi na área indígena aqui no Vale do Javari, foi em outra área”, diz o ex-servidor.
Greve na Funai
Ontem, os servidores da Funai aprovaram “estado de greve por 24 horas”, exigindo uma retratação do presidente do órgão, Marcelo Augusto Xavier da Silva, que acusou Bruno Pereira e Dom Phillips, desaparecidos desde domingo (5) de entrarem em área indígena sem autorização. Os servidores também reivindicam o envio de forças de segurança para as bases de proteção do Vale do Javari e para as sedes das coordenadorias regionais da Funai.
Em Atalaia do Norte, Max foi lembrado em diversas falas dos indígenas no ato desta segunda-feira. “O presidente da Funai quer tirar o dele da reta, dizendo que a CR [Coordenadoria Regional] do Vale do Javari está sendo protegida. Não está sendo protegida!”, bradou Silvana Marubo, líder das mulheres artesãs do povo Marubo durante a coletiva dos indígenas na sede da Univaja (União dos Povos Indígenas do Vale do Javari). “Se tivesse sendo protegida não teria acontecido o que aconteceu com Maxciel e depois agora com o Bruno”, disse.
No último dia 10 de junho, uma nota da Uniind (União Independente de Indigenistas de Grupos Isolados e de Recente Contato) também lembrou o caso de Maxciel. “Todas as equipes das FPE’s [Frentes de Proteção Etnoambiental] atuam visando coibir ilícitos na Amazônia Legal e proteger o direito constitucional de isolamento voluntário dos últimos grupos que assim decidiram permanecer”, diz o documento. “No Javari, somente na última década, aconteceram diversos ataques à base e aos servidores em retaliação a apreensões e fiscalizações, inclusive resultando na morte do Maxciel dos Santos em 2019, crime que nunca teve solução”, continua.
O documento cita outros casos de conflitos envolvendo indigenistas que trabalhavam em contato com grupos isolados ou de recente contato. Um dos casos citados é o de José Milamar da Silva, conhecido como “Valdez”, que trabalhava com os Yanomami Ye’Kwana em Roraima. O corpo de Valdez foi encontrado carbonizado em seu carro no município de Bonfim (RR).
“Tanto a vivência profissional quanto pessoal dos trabalhadores desses locais acabam por se misturar, diante do fato dos servidores atuarem e residirem na mesma localidade dos infratores apreendidos que, devido a questões jurídicas, acabam por serem libertados rapidamente, ainda que detidos em flagrante delito. Portanto, é comum os servidores se depararem com invasores ou seus associados em padarias, supermercados e afins”, diz o documento.
A Uniind reivindica, entre outros quinze pontos, a atribuição de poder de polícia aos servidores das FPEs, a renovação e ampliação dos quadros nestas unidades e a reestruturação nas bases das FPEs. Segundo a entidade, há uma defasagem de 90% no quantitativo de indigenistas da Funai dedicados ao trabalho com grupos indígenas isolados ou de recente contato.
Procurada pela reportagem, a PF do Amazonas não retornou aos pedidos de informação da reportagem sobre o inquérito que apura a morte do indigenista. Os funcionários da Funai ouvidos pela reportagem também disseram não ter informações sobre os trabalhos policiais. O processo corre na Justiça sob sigilo.