Promulgada no final de 2021 após um longo percurso de negociações no Congresso Nacional, a Lei Assis Carvalho 2, que prevê medidas de socorro estatal para agricultores familiares, segue sem aplicação no país. A situação vem sendo denunciada por movimentos populares do campo que pressionam o governo Bolsonaro por uma imediata execução da norma.
Registrada com o número 14.725/21, a medida prevê a liberação de R$ 2,5 mil para camponeses afetados pela pandemia cuja situação seja de pobreza ou extrema pobreza, com pagamento de R$ 3 mil para núcleos liderados por mulheres.
Também determina a criação de uma linha de crédito sem juros específica para produtores de leite com uma década para quitar os valores.
Outros pontos fixados pela lei são: adiamento de parcelas vencidas de operações de crédito rural; prazo de até 30 de dezembro deste ano para descontos na negociação de débitos; entrada em programa da Companhia Nacional de Abastecimento (Conab) que compra e distribui alimentos para pessoas em situação de insegurança alimentar, entre outros benefícios.
O agricultor Alex Morgan, de Alto Alegre (RS), está entre os que esperam a chegada de algum amparo governamental para o setor, duramente penalizado pelos efeitos da pandemia. No Rio Grande do Sul em particular, as plantações foram afetadas ainda por uma longa estiagem que prejudicou as lavouras.
O camponês, que produz laranja e leite in natura destinado à agroindústria, conta que o valor agregado da mercadoria comercializada pela família reduziu cerca de 70% nos últimos tempos. A queda comprometeu ainda mais a renda da família, gerando dificuldades na produção de alimentos. Sem ajuda governamental, Morgan conta que o desestímulo vem tomando conta do trabalho.
“A gente está meio desacreditado diante do governo que está aí hoje, principalmente porque o governo federal, para a agricultura familiar, não está fazendo praticamente nada. E olha que a gente vem de uma estiagem severa. É uma situação muito preocupante esta de hoje da agricultura. Sinceramente, estamos esquecidos", afirma o agricultor.
STF
Parlamentares da bancada do PT na Câmara ingressaram com uma ação no Supremo Tribunal Federal (STF) para pedir que o Judiciário obrigue o governo a cumprir a lei. Os petistas acusam o ministro da Economia, Paulo Guedes, e o presidente Jair Bolsonaro (PL) de crime de responsabilidade por conta da inoperância da norma.
O partido argumenta que o esquecimento da lei deixa o segmento ainda mais vulnerável às intempéries do momento e não ajuda a mitigar os impactos socioeconômicos causados pela crise sanitária originada pela covid-19. A omissão fere a Constituição Federal, segundo o PT.
A ação tramita há dois meses e está sob relatoria do ministro Edson Fachin, mas ainda sem apreciação por parte do magistrado. O coordenador do núcleo agrário do PT, deputado Airton Faleiro (PT-PA), conta que o estímulo para recorrer à Corte partiu do grande dispêndio de energia que foi investido na tramitação do projeto de lei (PL).
“Fizemos um processo democrático, apresentamos um projeto, foi escolhido um relator, votamos e aprovamos quase por unanimidade, depois foi pro Senado, foi aprovado e, estranhamente, o presidente vem e veta. Depois, derrubamos o veto, a lei foi sancionada e agora não é aplicada. Por que isso?”, questiona.
Fluxo
A medida nasceu a partir de reivindicação direta de movimentos agrários junto aos parlamentares, por isso tem amplo apoio popular e resultou em grande pressão desses setores sobre o Legislativo para garantir um sinal verde ao então projeto de lei.
Batizada de Lei Assis Carvalho 1, a primeira proposta com esse teor surgiu ainda em 2020, por meio do PL 735/2020, que previa uma série de medidas de amparo ao setor, entre elas um auxílio emergencial específico para agricultores. O texto foi chancelado pelo Congresso, mas terminou virando alvo da tesoura de Bolsonaro, que vetou quase todos os pontos da lei.
O freio presidencial estimulou duros protestos de opositores e gerou como reação a apresentação de uma nova proposta, o PL 823/2021. Assinado pela bancada do PT, o texto recuperava os trechos vetados pelo chefe do Executivo e foi novamente aprovado pelo Legislativo, mas mais uma vez esbarrou na objeção de Bolsonaro, que vetou integralmente a proposta. O veto foi derrubado por deputados e senadores em dezembro, e a legislação terminou sendo promulgada dias depois.
“Com veto derrubado e lei promulgada, tem que ser executada. É isso que nos motivou a procurar o STF porque, além de desrespeitar o Congresso, pelo fato de haver o descumprimento de uma deliberação quase unânime do Legislativo, a maior maldade é com a população que produz e a que consome alimentos”, atribui Faleiro.
A secretária de Política Agrícola da Confederação Nacional dos Trabalhadores na Agricultura (Contag), Vânia Marques, afirma que, pelo fato de Bolsonaro negar frequentemente as reivindicações do segmento, a entidade “já sabia” que seria difícil se efetivar a legislação.
“Mas a gente vê como um grande desrespeito com a categoria, que já enfrenta um descaso histórico referente a direitos, políticas públicas. A situação da agricultura familiar não tem sido fácil. A gente vê isso como um grande desrespeito por parte do governo de não olhar pra categoria que é responsável pela alimentação do Brasil”.
Incentivos
Milton Fornazieri, o “Rascunho”, do Setor de Produção do Movimento dos Trabalhadores Rurais sem Terra (MST), assinala que a não execução da Lei Aldir Blanc 2 agrava a situação dos que vivem do campo e hoje não encontram meios de incentivo à produção.
“Nesses últimos seis anos, nós praticamente perdemos todo o PAA [Programa de Aquisição de Alimentos], toda a assistência técnica, e o crédito que tínhamos voltados pra alguns assentamentos de reforma agrária diminuiu muito em termos de acesso dos assentados ao nível de Brasil”, resume.
Fornazieri acrescenta que o Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar (Pronaf) também ficou mais inacessível.
“As cooperativas ou famílias vão lá aos bancos e não encontram mais crédito porque o governo Bolsonaro suspendeu tudo. A gente vê nisso a questão da prioridade porque, se a agricultura não é prioridade, então, eles cortam tudo o que a gente precisa. Por outro lado, você vê aí as emendas secretas [do Congresso] esbanjando dinheiro e gastando todo tipo de orçamento no país”, compara.
O MST destaca que o incentivo por meio de créditos disponíveis para o setor é fundamental para garantir a produção necessária de alimento e evitar escassez de produtos no mercado. “Pra quem vive no campo, ou você tem capital de giro pra plantar e ter condições de produzir ou você simplesmente não produz.”
Governo
O Brasil de Fato tentou ouvir o Ministério da Agricultura (Mapa), gestor das políticas previstas na Lei Assis Carvalho 2, a respeito da não execução da norma e das críticas expostas nesta reportagem, mas não obteve retorno da pasta até o fechamento da matéria.
Edição: Lucas Weber