Se não restaurar, não preservar o pouco de cerrado que temos, daqui a pouco não vamos ter água
Com o avanço do desmatamento em áreas do Cerrado destinadas ao plantio de commodities, como soja, milho, entre outros grãos, e áreas de pastagem, uma das preocupações é como reverter esse processo de degradação que está cada vez mais acelerado?
Se as políticas públicas de conservação em grande escala não acontecem na velocidade necessária, pesquisadores e populações locais que ocupam há séculos esses territórios encontram soluções possíveis para preservação da biodiversidade e que ainda geram renda e emprego em municípios de Goiás.
“O desmatamento crescente é uma preocupação muito grande, tentamos atuar na outra ponta, na recuperação de áreas que já sofreram algum tipo de impacto ou alguma degradação. Se uma comunidade rural entende que o cerrado de pé tem valor e se esse valor é mensurado a partir da coleta de sementes, elas conservam, cuidam e se preocupam com a manutenção deles [territórios]. Então esse é o processo: o cerrado de pé, viabiliza produção de renda, que viabiliza geração de renda, que viabiliza área restaurada”, afirma a bióloga Alba Orli de Oliveira Cordeiro, especialista em restauração ecológica.
A atividade de coleta de sementes é um dos dos objetivos do projeto “Águas Cerratenses: Semear para brotar” para recuperar a mata nativa plantando diferentes espécies em 800 hectares do Cerrado até 2024.
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Muvuca
Para cumprir essa meta e semear vários hectares em um dia, Alba Cordeiro conta que é preciso ter uma grande quantidade de sementes, selecionar áreas em que é possível mecanizar o processo de restauração. Além disso, uma das técnicas que ajudam a viabilizar os que têm essa meta é a muvuca de sementes ou também chamada de semeadura direta.
“A técnica nada mais é que selecionar as espécies do Cerrado de maior ocorrência, com maior potencial de estabelecimento e crescimento, faz uma mistura dessas espécies, incluindo capim nativo, arbustos, árvores e dispersa essas sementes onde a gente fez a preparação do solo. Tudo isso acontece no início das águas, no período de chuvas, porque quanto mais elas pegarem chuvas maior vai ser o estabelecimento na área”, explica.
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Projeto
O projeto “Águas Cerratenses: Semear para brotar” pretende gerar emprego e renda para mais de 200 famílias coletoras de sementes, movimentando cerca de R$2,4 milhões e cerca de 40 toneladas de sementes.
A iniciativa é da Rede de Sementes do Cerrado em parceria com a Associação Cerrado de Pé e a Semeia Cerrado. O coletor de sementes Claudomiro de Almeida Cortes, vive em Goiás, na Vila de São Jorge, uma das comunidades no entorno do Parque Nacional da Chapada dos Veadeiros (GO).
“Você sai de manhã começa coletar aquelas sementes, meio dia volta pra casa vai beneficiar ela, você está vendo ali vida e aquela semente ainda vai gerar renda pra gente e ao mesmo tempo vai recuperar as nascentes e o cerrado para no futuro ter mais qualidade de vida. Se tem coisa melhor do que coletar semente a gente não conhece”, relata.
Associação
A Associação Cerrado de Pé que Claudomiro faz parte é composta atualmente por mais de 100 famílias de coletores de sementes nativas do bioma. Além da Vila de São Jorge, participam coletores do Assentamento Silvio Rodrigues, Colinas do Sul, Alto Paraíso de Goiás, Teresina de Goiás, Cavalcante, São João d'Aliança e Comunidades do Território Quilombola Kalunga.
“Não sou só eu, mas todas famílias gostam de coletar sementes, e aos poucos estamos conseguindo virar o nosso patrão. Eu trabalhei como brigadista, guia, eu fiz muita coisa, mas assim agora eu encontrei o que eu mais gosto de fazer”, diz o coletor.
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Ao longo de cinco anos foram coletadas 29 toneladas de sementes e uma renda de R$ 775 mil reais para associação. Claudomiro relembra quando começou a coletar sementes de capim, algo novo até então na região. “E aí as pessoas ficavam perguntando, mas coleta sementes de capim, semente de mato para plantar? As pessoas chamavam a gente de doido” lembra Claudiomiro.
Bioma
O Cerrado abriga a ‘Caixa d'água do Brasil’ e contribui com 8 das 12 regiões hidrográficas brasileiras. Uma das preocupações é com a proteção para segurança alimentar e hídrica, não só desta região, mas de todo país.
“Se não restaurar, não preservar o pouco de cerrado que a gente tem, daqui a pouco não vamos ter água, isso é fato. Eu sou nascido e criado aqui há 20 anos atrás, eu via muita nascente, muita vereda, muito campo úmido e hoje a gente quase não vê”, afirma o coletor de sementes.
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Os municípios beneficiados pelo projeto nesta primeira etapa são no estado de Goiás: Alto Paraíso de Goiás, Teresina de Goiás, Cavalcante, São João da Aliança, Minaçu e Niquelândia.
Edição: Daniel Lamir