Nos últimos quatro anos, o Brasil retrocedeu ou não conseguiu cumprir totalmente 80% das recomendações feitas pela Organização das Nações Unidas (ONU) para garantias de direitos humanos.
O resultado inédito está no monitoramento feito pela sociedade civil à Revisão Periódica Universal (RPU), uma espécie de prestação de contas que as nações fazem à ONU. Mecanismo periódico, a RPU existe desde 2008 e verifica a execução de compromissos que foram assumidos por 193 Estados-membros.
Em 2017, o Brasil aceitou 242 recomendações feitas por outros estados-membros da ONU em diferentes setores. Entre todas essas, apenas uma (que trata da garantia de trabalho digno para trabalhadoras e trabalhadores domésticos), foi considerada como plenamente cumprida, de acordo com o monitoramento.
A análise foi feita por 31 entidades que fazem parte do Coletivo RPU Brasil. Das mais de 240 recomendações, 46% não só deixaram de ser cumpridas como foram enfraquecidas. Somente 17% dos tópicos foram considerados parcialmente cumpridos.
O retrocesso brasileiro é visto em áreas como educação, saúde, igualdade de gênero, direitos dos povos indígenas, acesso a espaços democráticos, trabalho, redução da pobreza, meio ambiente, justiça criminal e mais.
“Nosso papel, enquanto sociedade civil, foi monitorar, cobrar o cumprimento dessas recomendações durante esses anos e, agora, estamos trabalhando para pautar as novas recomendações que serão feitas ao estado brasileiro”, explica Andressa Pellanda, coordenadora da Campanha Nacional pelo Direito à Educação e integrante do Coletivo RPU Brasil.
Ela afirma que questões estruturais explicam o resultado. Na lista está a fragilidade das instituições democráticas, que incluem até mesmo riscos à realização das eleições, incentivados pelo discurso do governo de Jair Bolsonaro (PL).
O problema também está ligado ao desfinanciamento de políticas públicas, às privatizações e às reformas de estado, “que atingem direitos de forma transversal”, segundo Pellanda.
Retrocessos em diferentes áreas
No relatório relativo aos direitos dos povos indígenas, por exemplo, as organizações observaram que nenhuma das 27 metas colocadas foi totalmente cumprida. Já a análise voltada à políticas de garantias de saúde e vida digna monstra que apenas uma das doze recomendações está em prática e, ainda assim, parcialmente.
O Brasil também está retornando ao passado também no que diz respeito ao combate e a investigação da violência policial. As orientações da comunidade internacional não se transformaram em políticas e conquistas anteriores foram perdidas. O cenário é o mesmo nas ações de combate à tortura.
“Nós vemos uma agenda dessas reformas liberais, que reduzem o papel do estado e, ao mesmo tempo, uma agenda muito conservadora e que vai na contramão de diversos direitos humanos, inclusive via uma tutela militar do estado brasileiro”, alerta Pellanda.
Educação em perigo
A Campanha Nacional pelo Direito à Educação participou da elaboração de um dos relatórios do documento. A revisão apontou que todas as 15 recomendações feitas para promoção do ensino não foram cumpridas pelo Brasil.
De acordo com a análise, a execução do Plano Nacional de Educação (PNE) é muito baixa e políticas de redução do papel do estado no setor avançam. A austeridade, que tira financiamento de áreas sociais, também causa reflexos significativos.
Segundo Andressa Pellanda, os índices são alarmantes, “Temos a mais baixa execução orçamentária dos últimos dez anos. São R$ 63 bilhões a menos na lei orçamentária anual do mínimo que a gente precisaria para um mínimo emergencial para enfrentar os desafios da crise que estamos vivendo.”
O relatório do governo
O Brasil tem até o dia 8 de agosto para apresentar um relatório final à ONU, em Genebra na Suíça. Atualmente, o documento elaborado pela gestão de Bolsonaro está em consulta pública.
No texto, o governo cita medidas e “esforços” para colocar em prática políticas em atendimento às metas estabelecidas. Não há, no entanto, nenhuma menção aos pontos de retrocesso destacados pela sociedade civil.
O texto elaborado pelo governo termina com uma espécie de queixa sobre a atuação da ONU no cumprimento das metas. A Organização é acusada de não estabelecer diálogo com o governo federal em favor de outros poderes da república, que teriam sido “fortalecidos e priorizados no processo”.
“Observamos uma escolha da ONU em priorizar outros atores institucionais em detrimento do Governo Federal, quando muitas vezes os demais poderes sequer se posicionam como Estado e, nessa divisão confusa de papeis, acabam 'cobrando' do Executivo como se apenas este fosse responsável por dar cumprimento às recomendações endereçadas ao Brasil.”
O documento segue disponível para consulta pública até 30 de junho.
Edição: Felipe Mendes