Seu jogo de colocar em dúvida se respeitará o resultado eleitoral caso seja derrotado é óbvio
Em O Povo Contra a Democracia, um dos livros mais interessantes que li há três anos na busca de compreender o fenômeno da ascensão da extrema-direita no mundo, Yascha Mounk afirma um ponto em comum nas experiências mundiais: a oposição sempre subestima e menospreza o líder populista, deixando de enxergar o que pode advir de suas “bravatas”.
A guerra que Jair Bolsonaro trava com o Poder Judiciário saiu do campo do mero discurso e da retórica para apoiadores e passou a utilizar os instrumentos formais de que dispõe, em um custo de oportunidade de vantagem tática e estratégica na disputa indireta para desestabilizar o campo institucional que tem por adversário.
Até bem recentemente, para alguns agentes públicos, quando se falava na possibilidade de golpe no Brasil havia uma rejeição natural ao nome por se fazer uma projeção de vivência passada ao futuro. A experiência democrática pós anos 80, com a Constituição Federal e as eleições diretas, firmou uma crença nas instituições e na estabilidade das relações no interior do Estado como se fossem capazes, por si só, de dar conta de tentativas de dissolver qualquer aventura golpista.
Com a subida do tom do discurso de Bolsonaro nas redes e nas ruas a partir de 2021, bem como as falas feitas pelo ministro da Defesa, general do Exército Walter Braga Netto, especialistas e pessoas públicas começaram a levar em consideração que a perspectiva de não respeitar a vontade das urnas, conquanto possa ser complexa e difícil a probabilidade de sucesso, possui desejo e disposição do Presidente da República, o que a torna um cenário possível real.
Na seara de mudança de método, Bolsonaro apresentou no último dia 16 de maio uma notícia de crime no Supremo Tribunal Federal (STF) contra o ministro Alexandre de Moraes, acusando-o de abuso de autoridade na condução do Inquérito 4.781, conhecido como inquérito das fake news, que investiga a coordenação de ataques aos ministros do Supremo. O pedido foi imediatamente rejeitado pelo ministro Dias Toffoli, ao que Bolsonaro respondeu apresentando, no dia seguinte, uma representação para que a Procuradoria-Geral da República (PGR) investigue Moraes e com o anúncio de que estuda denúncia às cortes internacionais.
O inquérito das fake news foi aberto em março de 2019 com base no artigo 43, do Regimento Interno do STF. Em junho de 2020, o plenário do Tribunal, nos autos da Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) nº 572, julgou a investigação legal e constitucional, por 10 votos a 1, divergindo apenas o ministro Marco Aurélio Mello. O entendimento do colegiado foi o de que ataques em massa, orquestrados e financiados com propósito de intimidar os ministros e seus familiares, justificam a manutenção das investigações, necessárias para viabilizar a defesa institucional daquela instituição.
Evidentemente, Jair Bolsonaro não imagina que o STF vá abrir investigação contra um de seus ministros pela condução de um inquérito por eles mesmos validado. Sua insistência aponta criar condições agora para intenções futuras.
Alexandre de Moraes assumirá a presidência do Tribunal Superior Eleitoral (TSE) em agosto de 2022. Conduzirá, portanto, como autoridade maior, as eleições nacionais desse ano. A Bolsonaro importa, desde já, desgastar ao máximo a imagem do futuro presidente do TSE, a quem já chamou de “líder da oposição”, “líder de partido de esquerda”, “canalha” e adjetivos análogos. Ao situá-lo no campo de adversário político, a arguição de sua suspeição para conduzir julgamentos que coloquem a lisura das eleições em questão será apenas consequência, as condições estarão dadas.
A despeito de seu despudorado desprezo pelas perdas de vidas humanas com a pandemia da covid-19, dos frequentes escândalos que assolam seu governo, da deprimente situação econômica do país, de uma agenda de destruição das políticas públicas em todos os níveis, da violação cotidiana de direitos, Bolsonaro possui um espantoso índice de aprovação popular e de intenção de votos que o torna um candidato competitivo para se reconduzir à cadeira que hoje ocupa. Por centenas de razões, algumas facilmente detectáveis por um jogo político midiático diuturnamente alimentado pela antipolítica, outras que nos desafiarão por décadas a compreender.
Seu jogo de colocar em dúvida se respeitará o resultado eleitoral caso seja derrotado é óbvio, mas nem por isso menos perigoso. Não se trata de fazer prognóstico pessimista a respeito, menos ainda ser fatalista, mas de levar a sério suas ameaças à democracia.
As entidades que ora se movimentam para observar de perto o processo eleitoral, atuando nos fóruns abertos pelo TSE, já entenderam que há uma batalha em curso, que inclusive transpõe temporalmente o processo de outubro, mas requer uma atuação desde já. Não se trata de defender uma pessoa, tampouco esquecer a contribuição dos órgãos do sistema de justiça para o atual estado de coisas, no estrago na credibilidade e solidez das instituições brasileiras e os danos às normas constitucionais. Trata-se da defesa das regras do jogo democrático.
Nesse jogo, as eleições são apenas uma etapa. Fundamental, bom que se afirme, mas uma etapa. O pior erro, o mais fatal, seria supor que sejam um fim em si mesmas e que o fenômeno do bolsonarismo se esvairá com a derrota de seu líder. Haverá uma luta muito longa pela frente, de múltiplos conflitos. Por isso mesmo a atual batalha importa tanto. Porque alude à contenção da marcha da corrosão das normas democráticas no momento primário, com garantia das eleições livres e a afirmação da vontade popular.
Nesse jogo não somos torcida, estamos em campo.
*Tânia Maria Saraiva de Oliveira é advogada, historiadora e pesquisadora. É integrante do Grupo Candango de Criminologia da UNB (GCcrim/UNB) e integrante da Coordenação Executiva da Associação Brasileira de Juristas pela Democracia (ABJD).
**Este é um artigo de opinião. A visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato.
Edição: Rodrigo Durão Coelho