A juíza apontou a responsabilidade do estado na concepção, planejamento e execução da matança
O ronco do avião atrai as crianças naquela manhã. Saem em disparada para o campo. O que significa aquele estardalhaço, um barulho que nunca haviam escutado? O biplano voa baixo e dele chovem caramelos. Elas correm para agarrar aquele presente caído do céu. Agora que estão alegres e entretidas, são alvos fáceis para o fogo cerrado que vem do avião e para as bombas incendiárias que explodem no chão.
É a abertura da cena de sangue do dia 19 de julho de 1924 no Chaco argentino (província no nordeste do país). As vítimas são índias. Homens, mulheres e crianças. Quase 100 anos depois, o país que já acertou as contas com sua ditadura, está acertando esta conta mais antiga com seu passado mais remoto e também brutal.
“São crimes de lesa humanidade, cometidos no marco do genocídio dos povos indígenas”, classificou a juíza Zunilda Nirempreger na sua sentença, pronunciada na cidade de Resistência, também no Chaco, na semana que passou. Sob comoção intensa, o veredito foi lido e traduzido simultaneamente nos idiomas Qom e Mocoiqt, das vítimas.
Referia-se ao “Massacre de Napalpi”, mais a perseguição e o assassinato de quem dele conseguiu escapar. No ataque pelo ar e por terra contra os dois povos indígenas morreram entre 400 e 500 pessoas. Os que se esquivaram das balas, novamente homens, mulheres e crianças, acabaram degolados. Tiveram cortados pênis, testículos e orelhas, depois orgulhosamente exibidos na delegacia de polícia de uma cidade próxima.
O avião que jogava caramelos surgiu no relato de Rosa Grilo, única testemunha viva da chacina. Antes, Melitona Enrique, índigena que morreu em 2008, relatara que a quantidade de cadáveres era tanta que os urubus, fartos de carniça, deixaram de voar durante semanas.
O processo se arrastava havia mais de duas décadas. Nenhum assassino poderá ser condenado, apenas execrada a memória de todos eles. Eram 130 militares, policiais e civis armados que dispararam mais de mil tiros em uma hora e surpreenderam a aldeia durante uma celebração religiosa. Obedeciam as ordens do governador do território, o ruralista Fernando Centeno. Nenhum dos agressores morreu ou sequer foi ferido.
O crime dos Qom e Mocoitq foi cruzar os braços. Naquele julho, estavam empilhados na reserva, famintos, sem roupas para enfrentar o frio. Semi-escravizados, cultivavam algodão. Penavam de sol a sol, ganhavam pouco, pagavam fretes caros e o governador lhes impôs um tributo de 15% sobre a colheita. Denunciaram os maus tratos e se declararam em greve.
A resposta veio na forma de chumbo e, do ponto de vista dos fazendeiros, unia o útil – o combate à greve - ao agradável - o assalto às terras indígenas.
A juíza apontou a responsabilidade do estado na concepção, planejamento e execução da matança. Ordenou que a TV Pública divulgue a sentença para que a população tome conhecimento da barbárie. Obrigou também o estado a um ato público para reconhecer sua culpa. E a instituir a educação bilíngue para as comunidades atingidas; esclarecer as forças de segurança sobre os direitos dos povos originários; implantar o conhecimento dos fatos nos currículos de todas as escolas de todos os graus; criar um sítio de memória no local da chacina, entre outras providências. Antes, em 2020, já impusera uma reparação de 350 milhões de pesos aos descendentes das etnias trucidadas.
É uma lição para quem, como o Brasil, continua matando os seus pobres, sobretudo se, além de pobres, forem negros. É uma matança imemorial que se desdobra neste país falsamente cordial e que, como episódio mais recente, traz a chacina desta terça-feira na Vila Cruzeiro, no Rio.
Não se espere punição para os matadores. Nem para os de hoje quanto mais para aqueles de 1964 ou para os carniceiros de tempos ainda mais longínquos. Seria uma inspiração se os dois vizinhos não estivessem tão distantes entre si na prestação de contas à História.
Não custa lembrar que, aqui, ditadores fardados nomeiam ruas, avenidas, viadutos, cidades, estádios. Do lado de lá da fronteira, eles enfrentaram a Justiça. O mais notório dos carrascos, o general Jorge Rafael Videla, condenado à prisão perpétua, morreu sentado no vaso sanitário da sua cela, fulminado por um ataque cardíaco. Cemitérios se recusaram a receber seus restos. Hoje, seu nome não batiza nem um bueiro.
*Ayrton Centeno é jornalista, trabalhou, entre outros, em veículos como Estadão, Veja, Jornal da Tarde e Agência Estado. Documentarista da questão da terra, autor de livros, entre os quais "Os Vencedores" (Geração Editorial, 2014) e “O Pais da Suruba” (Libretos, 2017). Leia outras colunas.
**Este é um artigo de opinião. A visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato.
Edição: Rodrigo Durão Coelho