Durante muito tempo os povos indígenas e a floresta amazônica foram retratados pelo ‘olhar estrangeiro’ nas artes visuais e nas fotografias. O jornalista e fotógrafo amazonense Alberto César Araújo quer contribuir para quebrar esse padrão. Ele não nega a relevância do que chama de “herança estrangeira” na história, mas afirma que é necessário “pensar a produção atual a partir de um olhar decolonial”. Ou seja, ele defende uma justa reflexão a partir do “olhar de dentro”.
Para isso, Alberto César Araújo e mais 12 artistas visuais e comunicadores da região, entre eles sete indígenas, integram a Mostra de Fotografias “I.Margens”, que entra em cartaz nesta terça-feira (24), na Galeria do Largo São Sebastião, no Centro de Manaus. Ela ficará em exposição até o mês de agosto e marca a reabertura da Galeria do Largo após oito meses fechada para reformas.
Os artistas que fazem parte da exposição são os fotógrafos e as fotógrafas Alonso Jr, Robert Coelho, Paulo Desana, Raphael Alves, Tayná Sateré-Mawé, Juliana Pesqueira e Andressa Zumpano; os comunicadores indígenas Sâmela Sateré-Mawé, integrante do Blog Jovens Cidadãos da Amazônia Real, e Cruupoohre Akroá Gamella, pertencente a um coletivo do povo Akroá Gamella, e a influenciadora digital Cunhaporanga Tatuyo. Também fazem parte da mostra o artista visual e antropólogo Jaime Diakara, do povo Desana, e o pajé Buú Kennedy que, além de ser um dos retratados nos trabalhos dos fotógrafos, participa com intervenção artística.
Alberto César Araújo lembra que historicamente, a Amazônia é representada no campo da iconografia, incluindo a fotografia, a partir de uma visão de fora, que acabou formando um imaginário idílico e romântico da região. No entanto, ele admite que negar esse legado soaria “contraproducente, ambicioso e até arrogante”.
Mas, ao mesmo tempo, destaca Alberto César, é preciso hoje reconhecer as manifestações mais próprias do povo da Amazônia. “Se faz necessário e mais do que urgente nos dias de hoje. Essa é uma forma de se fazer uma correção da distorção histórica”, explica.
A Mostra de Fotografias “I.Margens” surgiu a partir de um convite de Cristóvão Coutinho, diretor da Galeria do Largo. Alberto César, então, passou a trabalhar o conceito e ir em busca das produções que fariam parte da exposição.
Ele explica que a letra “I” do nome da Mostra “I.Margens” é uma referência aos povos indígenas, enquanto a palavra “margens” faz relação com as margens dos rios, dos indígenas à margem da sociedade e a Amazônia na margem dos debates de políticas públicas.“Ocupar com arte é desocupar o retrocesso. Temos fotografias feitas pelos indígenas e fotografias de indígenas produzidas por não indígenas. Buscamos na exposição uma conexão entre as imagens seja pela imagética ou pelo assunto apresentado, mas o grande conector delas são os povos indígenas que estão retratando e estão sendo retratados”, explica o curador.
A mostra “I.Margens” também vem acompanhada por vídeos, com curadora do professor e jornalista Gustavo Soranz, intitulada “Entre Sonhos e Telas, Mundos Imaginados” com obras dos artistas Dimas Mendonça, Lily Baniwa, Nayara Alice Bertoli, Márcio Souza, Roberto Kahané e Feliciano Lana.
Formado em Jornalismo pela Uninorte e mestre pelo Programa de Pós-Graduação em Letras e Artes (PPGLA) na Universidade do Estado do Amazonas (UEA), Alberto César Araújo atua na profissão desde 1991 e tem fotos publicadas na mídia nacional e internacional. Premiado com o Esso da Fotografia em 2001 e com o prêmio Carolina Hidalgo Vivar no POY LATAM em 2013, ele é fotógrafo e editor de fotografia da agência Amazônia Real.
Artista plástico, curador e diretor da Galeria, Cristóvão Coutinho destacou a reabertura e a ampliação do espaço artístico. “Hoje a arte abrange inúmeras atividades humanas, está tudo entrelaçado. Não vemos arte somente com o olhar. A ideia é que o público absorva as exposições da Galeria de várias formas e por meio de todos os sentidos”, salientou.
O cineasta e fotógrafo indígena, Paulo Desana, do povo Desana, é colaborador da agência Amazônia Real e um dos 12 artistas, entre fotógrafos e produtores de conteúdo, que compõem a Mostra “I.Margens”. Unindo imagens e tintas fluorescentes, Paulo retrata em sua obra a mitologia da viagem da Cobra-Canoa da Transformação, que na língua Tukano se chama “Pamürɨmasa” (os Espíritos da Transformação) e intitula a sua obra.
“Para os povos indígenas do Alto Rio Negro, o mito da Cobra-Canoa explica como a humanidade foi formada no bojo da grande cobra, criando comunidades ao longo do rio. No projeto, o ponto central é mostrar o que os indígenas herdaram de seus antepassados. A inspiração de usar a tinta luminescente, é fazer com que este efeito simbolize a manifestação dos espíritos de seus antepassados da “Cobra-Canoa da Transformação”, conta Paulo à Amazônia Real.
O fotógrafo está à frente da Produtora Dabukuri Entretenimento, produtora que produz material audiovisual e artevisual sobre a cultura indígena, em parceria com a jornalista Ana Amélia Hamdan e a comunicadora indígena Daniella Yepá. Paulo Desana foi o diretor de fotografia do documentário “Ciência e Culinária – A formiga Maniuara na cultura do Povo Hupda”. O projeto fotográfico “Pamürimasa” também foi selecionado no Edital Ocupa CCVM 2020, realizado pelo Centro Cultural Vale Maranhão – São Luís, Maranhão.
As fotógrafas Juliana Pesqueira e Andressa Zumpano e os comunicadores Samela Sateré-Mawé e Cruupoohre Akroá Gamella integram a Mostra com o “Mural da Resistência”.
Fotógrafa e ativista, Juliana Pesqueira conta que a proposta é ocupar o espaço com fotografias feitas durante os atos e marchas de resistência dos povos indígenas em Brasília, como é o caso do Acampamento Terra Livre, a maior mobilização indígena do país, e a Marcha das Mulheres Indígenas.
“Quanto mais a gente fortalece a comunicação popular e seus comunicadores e chama também para ocupar esses lugares ‘fora da bolha’ com os seus trabalhos – nesse caso, com as fotografias -, a gente fortalece ainda mais o movimento. Quando produzimos uma fotografia ela não é minha, é de todo mundo. E a fotografia é uma ferramenta de luta para os povos indígenas. Esse é o propósito do mural”, destaca Juliana Pesqueira.
Nascida e criada em Manaus, Juliana Pesqueira atua como fotógrafa desde 2012. Ela é colaboradora da Amazônia Real e participa do Projeta Amazônia, coletivo de direitos humanos, comunicação e advocacia popular.
Raphael Alves, premiado fotógrafo e jornalista e colaborador de veículos nacionais e internacionais, entre eles a Amazônia Real, fotografou o cotidiano de Cunhaporanga Tatuyo, jovem indígena e influenciadora digital que possui mais de 100 milhões de visualizações na plataforma TikTok. Os vídeos dela também integram a exposição. Por último, presente na mostra a jovem Tayná Sateré-Mawé, fotógrafa que documenta o cotidiano de seus filhos na Terra Indígena Andirá Marau, na região do Baixo Amazonas, e posta as cenas em sua conta nas redes sociais.
Paralelamente, a Galeria também estreia outra exposição, intitulada “Sem Bêra, Nem Êra”, do fotojornalista Antonio Lima, nascido em Nova Olinda do Norte (AM), que soma mais de 30 anos de carreira. São 37 fotos de moradias alagadas, captadas no rio Amazonas, entre o Lago dos Reis e o município de Careiro da Várzea.
A reabertura da Galeria do Largo traz, ainda, a exposição “Contato com Gentil”, que reúne desenhos e pinturas de Gabriel Gentil, pajé, liderança indígena e escritor, que morreu em 2005. Ele teve suas obras resgatadas pelo curador Darlan Guedes e Espaço Mediações com artistas como Naya Arruda e M4fael.
Gabriel Gentil foi colaborador nas pesquisas de Casimiro Beksta, padre salesiano morto em 2015, profundo conhecedor dos povos indígenas do Alto Rio Negro. A Galeria do Largo funciona de terça a domingo, das 15h às 20h.