“Gente do céu... Esse pessoal branco tem que parar. Ficam passando veneno, destruindo tudo. O dia que acabar a natureza, os seres humanos vão se acabar também. Parece que os brancos são cegos. Parece que são surdos”.
Leila Rocha toma chimarrão olhando o rio todas as manhãs. Com 59 anos de idade, a liderança Guarani Ñandeva do município de Japorã, no Mato Grosso do Sul (quase fronteira com o Paraguai), diz ter de suportar ver, a cada dia, o mato desaparecer e as águas do rio diminuírem.
Foi ali, na Terra Indígena (TI) Yvy Katu, que Leila cresceu. Ela se lembra quando, aos 8 anos, sua comunidade foi expulsa, encaminhada “na marra” pela Funai para uma reserva “apertada” e viu sua terra ser tomada por fazendeiros. Na ocasião, ela prometeu ao pai que voltaria. Décadas depois, cumpriu.
Leila faz parte do Conselho da Aty Guasu (Grande Assembleia Kaiowá e Guarani) e da Kuñangue Aty Guasu (Grande Assembleia das Mulehres Kaiowá e Guarani). Participou da retomada da TI Yvy Katu em 2003 e, depois de serem despejados, esteve também na outra retomada, feita em 2013. Ali vive desde então. Mas a terra – que está demarcada e com a homologação pendente - não é mais a mesma. Está no meio de um estado tomado pela pecuária, por plantações de cana, milho e soja transgênica.
Segundo o MapBiomas, só as plantações de soja ocupam 36 milhões de hectares no Brasil, o equivalente a 4,3% do território nacional. É uma área maior do que países como a Itália ou o Vietnã.
Pouco menos que a metade (42%) dessa monocultura está na região do Cerrado, onde Leila vive. Entre 1985 e 2020, a soja se expandiu 464% no bioma.
Um ser que produz seu próprio fim
O veneno no rio mencionado por Leila vem da pulverização de agrotóxicos do agronegócio que, de tão sistemáticas no Mato Grosso do Sul, foram definidas como “agressões químicas” pelo procurador Marco Antônio Delfino, do Ministério Público Federal, em denúncias que levou adiante contra a prática.
O Cerrado é também uma das regiões do país que ganhou destaque no relatório do Painel Intergovernamental de Mudanças Climáticas (IPCC) da ONU, divulgado em abril. Se houver o aumento previsto da temperatura média da Terra de 4ºC a 5ºC, a previsão é que as chuvas nessa área do Brasil reduzam em 20%.
Ainda segundo o relatório da ONU, feito a partir de cerca de 18 mil publicações científicas, se o planeta não reduzir quase pela metade as emissões de gases do efeito estufa até 2030, uma catástrofe global será inevitável.
E o Brasil vem dando sua contribuição para que o planeta avance rapidamente nesse rumo. Dados da ONG Global Forest Watch divulgados no fim de abril apontam que o país foi responsável por 40% do desmatamento mundial em 2021.
No livro A queda do céu, o xamã e líder Yanomami Davi Kopenawa descreve que “os brancos não pensam muito adiante no futuro. Estão sempre preocupados demais com as coisas do momento”.
“A floresta está viva. Só vai morrer se os brancos insistirem em destruí-la”, profetiza Kopenawa: “Então morreremos, um atrás do outro, tanto os brancos quanto nós. Todos os xamãs vão acabar morrendo. Quando não houver mais nenhum deles vivo para sustentar o céu, ele vai desabar”.
Kopenawa explica que escreveu aquelas palavras em coautoria com o antropólogo Bruce Albert para que os brancos as compreendam e possam dizer “os Yanomami são diferentes de nós, (...) o pensamento deles segue caminhos outros que o da mercadoria”.
“Ruralista bebe água também”
E a mercadoria, diz Leila Rocha - com um tom de voz calmo, quase destoante com aquele que se esperaria de alguém que há tanto tempo tem de explicar o óbvio -, é inútil se a vida não puder existir.
“As pessoas não entendem a luta dos indígenas. Pensam que é por causa da terra. Não é isso. A gente luta pela natureza, pelo rio, pelos remédios tradicionais, para que as árvores possam ficar no lugar em que elas estão”, elenca. “A natureza também sente dor, igual o ser humano”, diz.
“É difícil colocar isso na cabeça das pessoas brancas. Quando você diz, parece que a pessoa entende tudo. Mas na verdade não entende né? Só pensa em destruir, passar o trator, queimar a beira do rio. Mas nós seres humanos precisamos dessa água. Nunca vamos viver sem água”, afirma Leila Rocha.
“Os ruralistas, fazendeiros, são devoradores da natureza. E não conseguem pensar que estão matando a própria vida deles. Se um dia a água acabar, nós seres humanos não sobrevivemos. Mesmo ruralista com toda a riqueza que tem. Ruralista bebe água também”, ressalta.
Retomadas de terra e de roças tradicionais
Mas enquanto uns insistem em destruir a natureza, outros se esforçam para salvá-la. Depois de décadas vivendo em duas aldeias de 26 hectares cada, os Guarani Mbya da TI Tenondé Porã, localizada na região de Parelheiros, zona sul de São Paulo, começaram, desde 2013, um processo de retomada de suas terras.
:: Retomadas em todo o país: indígenas ocupam suas terras ancestrais, ainda que sob ataque ::
Atualmente são 14 aldeias. Seis delas - Nhamandu Mirῖ, Yporã, Ikatu Mirῖ, Takua Ju Mirĩ, Ka’aguy Hovy e Kuaray Oua – foram retomadas de 2020 para cá.
A dispersão por um território mais amplo permitiu que, nos últimos anos, os indígenas retomassem também aspectos do nhandereko, o modo de viver Guarani. Uma parte desse conjunto de práticas e conhecimentos é a agricultura tradicional, antes impossibilitada pela falta de espaço.
Segundo levantamento do Centro de Trabalho Indigenista (CTI) em seis das aldeias, em 2020 já havia 80 roças indígenas, cultivando 190 variedades agrícolas. Entre elas, diferentes espécies de milho, mandioca, batata, feijão, abóbora e banana.
As roças foram desenvolvidas a partir do uso de sementes trocadas e também guardadas como tesouro pelos anciãos e anciãs Guarani, os xeramoĩ e as xejariy.
Juxuka Mirῖ, chamada de Clarisse em português, trabalha na roça da aldeia Kalipety (retomada em 2013) e é também coordenadora da Comissão Guarani Yvyrupa (CGY).
“Temos vários tipos de batata: roxa, branca, amarela. E milhos também. Tem preto, vermelho, branquinho, amarelo, colorido. A gente conseguiu resgatar os milhos de antigamente. Eu estou muito feliz. Quando eu era criança era bem difícil ver esse milho”, conta Jaxuka, que atualmente tem 37 anos. “Às vezes eu penso... Tem alguns mais velhos que já não estão mais junto conosco, que lutaram tanto para ver isso... Sabe?”
“O mundo não acaba, mas a gente acaba”
Jaxuka tem uma lembrança de, aos 12 anos, ouvir pela primeira vez os xeramoĩ’ kuery, os mais velhos, falando sobre a importância da manutenção das práticas e saberes indígenas para impedir que a ganância capitalista destrua a vida humana.
“Isso se fala desde antigamente. Não só juruá [não indígenas] né, mas mesmo nós Guarani: se não soubermos cuidar da natureza, das nossas rezas, se a gente começar a esquecer dos nossos, das nossas línguas...”, diz Jaxuka: “O mundo não acaba. Mas a gente acaba”.
“Hoje em dia esse mundo está louco mesmo. A natureza vive, a natureza chora, a natureza grita – e ninguém ouve mais”, resume Leila Rocha. “Eu espero que um dia os brancos entendam que os indígenas são guardiões. A gente não luta só pela terra. A gente luta por todos nós”.
Edição: Raquel Setz