antimanicomial

Análise | Gente é para voar, não para morrer no manicômio

Retrocessos impostos pelo governo federal colocam em risco a vida dos usuários

Brasil de Fato | São Paulo (SP) |
Política de retrocessos imposta pelo governo federal coloca em risco a vida dos usuários dos serviços legados pela Reforma Psiquiátrica - Fernando Frazão/Agência Brasil

No dia de hoje, 18 de maio, é comemorado, no Brasil, o Dia Nacional da Luta Antimanicomial. Sua origem remonta ao Congresso de Trabalhadores de Serviços de Saúde Mental, realizado em 1987, na cidade de Bauru, no interior de São Paulo. Marcado pela icônica “Carta de Bauru”, o encontro acabou por fundar o movimento antimanicomial brasileiro, que viria a contribuir com o processo de redemocratização.

Nos últimos 30 anos, a política nacional de saúde mental passou por transformações guiadas pela reforma psiquiátrica iniciada com a mobilização de movimentos antimanicomiais que cada vez mais passaram a integrar pessoas com longo histórico de internações. Elas são as protagonistas dessa revolução, que tem como horizonte retirar o Brasil da barbárie perpetuada pelas instituições manicomiais que mantinham e mantêm campos de concentração há mais de 200 anos.

Nesses espaços sobrevivem, desaparecem e morrem uma multidão de gente privada daquilo que torna o ser humano parte da humanidade: a liberdade. Como entoava Chico Science: “São demônios os que destroem o poder bravio da humanidade”. A sociedade brasileira precisa com urgência encarar os seus demônios. Não adianta recalcar – a forma como tratamos os chamados “loucos” vem à tona e nos define enquanto sociedade.

Passadas mais de três décadas da “Carta de Bauru”, o legado antimanicomial encontra-se ameaçado. O ritmo de destruição acelera-se vertiginosamente desde 2019. No primeiro semestre de 2022, atos do governo federal desmontaram, por meio de portaria, praticamente todas as previsões legais para o custeio dos programas de desinstitucionalização, além de determinarem um novo repasse milionário a hospitais psiquiátricos.

Prevista pela Lei nº 10.216/01 – ou “Lei da Reforma Psiquiátrica” –, de 2001, a desinstitucionalização consiste em uma obrigação do Estado, que, por meio de equipamentos já existentes no Sistema Único de Saúde (SUS), deve inserir na vida social, de forma plena, todas as pessoas que foram privadas de liberdade por internações em hospitais psiquiátricos e em manicômios judiciários.

O fato de os recentes atos governamentais terem sido impostos por meio de portaria sem consulta popular ou discussão ampla com as instâncias de controle social demonstra, mais uma vez, a desconexão total do governo federal em relação aos princípios democráticos do SUS e da política nacional de saúde mental.

O dever de desinstitucionalização possui respaldo não apenas na legislação interna, mas no direito internacional. O Brasil, inclusive, foi condenado pela Corte Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) em 2006, sendo esta a primeira condenação brasileira na CIDH e o primeiro precedente na Corte a respeito de violação de direitos humanos no campo da saúde mental.

O caráter arbitrário das decisões converge com os interesses corporativos de proprietários de hospitais em detrimento do investimento no SUS e na RAPS, justamente em um momento em que o sofrimento mental da população indica ter sido fortemente agravado pela crise econômica, social e pandêmica.

Como se não bastasse o desmonte e o fomento público a instituições obscuras, vivemos um apagão de dados sobre políticas públicas de Saúde Mental no Brasil. Desde 2015, o Ministério da Saúde recusa-se a dar continuidade à publicação do Saúde Mental em Dados, violando um dos princípios basilares da administração pública, a transparência.

Os problemas sociais de saúde pública possuem caráter intersetorial. Entretanto, o governo Bolsonaro tem reiteradamente transferido – em especial no que se refere ao acolhimento de pessoas que fazem uso problemático de álcool e outras drogas – para o campo moral-repressivo, inclusive abrindo caminho para o financiamento público de grupos de fundamentalistas religiosos.

Historicamente, as chamadas organizações sociais e comunidades terapêuticas (CTs) possuem conflitos de interesse com a desinstitucionalização, por se beneficiarem com a ampliação de vagas de internação. Segundo o Painel Saúde Mental: 20 anos da Lei 10.216/01, um balanço inédito dos últimos 20 anos, produzido pela organização sem fins lucrativos Desinstitute, em 2021, o Ministério da Saúde aumentou o financiamento para internações nessas instituições em 60% em 2017.

Como vem sendo apresentado pela imprensa, as CTs são alvos de denúncias de práticas sistemáticas de torturas, maus-tratos, violações à liberdade religiosa e trabalho análogo à escravidão em suas instalações, mantidas ao largo do controle social. Com um agravamento: algumas dessas instituições abrigam adolescentes.

O cenário desolador não está apenas nas CTs. Dados da última inspeção nacional em hospitais psiquiátricos, coordenada em 2018 pelo Mecanismo Nacional de Prevenção e Combate à Tortura (MNPCT) e outros órgãos de controle, mostram que mais da metade dessas instituições não apresentavam permissão sanitária de funcionamento e pelo menos 42% ofereciam alimentação inapropriada. Em 77% foi identificado o uso injustificado e recorrente da contenção mecânica.

Por experiência própria, afirmo categoricamente que os manicômios não ficaram no passado. Em 2011, em pleno século XXI, o Fórum da Luta Antimanicomial de Sorocaba (Flamas) denunciou um verdadeiro massacre continuamente perpetrado por uma rede privada de hospitais no então maior polo manicomial da América Latina, em Sorocaba-SP, que registrava a cifra assustadora de uma morte a cada três dias.

No lugar dos manicômios, os agentes políticos que dão vida aos princípios da Reforma Psiquiátrica constroem uma rede interdisciplinar de serviços que oferece cuidados em liberdade para pessoas em sofrimento psíquico ou com histórico de uso problemático de álcool e outras drogas. Entre as políticas públicas consolidadas, as residências terapêuticas são uma das experiências mais bem-sucedidas e em consonância com a preservação da dignidade humana.

Nesse sentido, o Desinstitute lança, neste mês de maio, um documento sobre desinstitucionalização no Brasil. A publicação "Desinstitucionalização - Da saída do manicômio à vida na cidade: estratégias de gestão e de cuidado" possui como foco os gestores municipais e estaduais, além do Sistema de Justiça. A intenção elaborada no documento é apresentar uma série de experiências de desinstitucionalização que possam servir como inspiração para aqueles que desejem colocar em prática os cuidados em liberdade.

No Dia da Luta Antimanicomial, mais uma vez, os usuários e usuárias dos serviços substitutivos recusam-se terminantemente a retornarem aos manicômios. Uma vez instaurada a liberdade, ela impõe sua verdade: o ser humano nasceu para voar e desejar. Então, as gaiolas que se apossam de corpos e colonizam mentes devem ser rompidas.

 

*Lúcio Costa é psicólogo, psicanalista e é Diretor-executivo do Desinstitute. Foi consultor da Coordenação Nacional de Saúde Prisional, do Ministério da Saúde, coordenador da Coordenação Geral de Direitos Humanos e Saúde Mental, da Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República, coordenador da Frente Nacional de Drogas e Direitos Humanos, e conselheiro do Conselho Nacional de Política de Drogas, do Ministério da Justiça. Atuou como perito no Mecanismo Nacional de Prevenção e Combate à Tortura (MNPCT), onde coordenou a Inspeção Nacional de Comunidades Terapêuticas, realizada em 2017, e a Inspeção Nacional em Hospitais Psiquiátricos em 2018. Atualmente, compõe o Grupo de Trabalho para a realização de estudos e medidas voltadas à superação das dificuldades relativas à promoção da saúde mental no Brasil, criada pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ).

**Este é um artigo de opinião. A visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato.

Edição: Rodrigo Durão Coelho