O feminismo popular na América Latina enfrenta o neoliberalismo em diferentes trincheiras
Por Tica Moreno*
Em todas as partes da América Latina e Caribe, as mulheres estão em luta. As imagens das grandes mobilizações a cada dia internacional de luta – 8 de Março – demonstram a força do feminismo. As notícias de avanços feministas em legislações e políticas públicas renovam nossa esperança. Entre mobilizações e avanços normativos, são muitos os caminhos trilhados pelas mulheres em movimento.
O feminismo se tece no cotidiano, nas estratégias e práticas que as mulheres colocam em marcha para sustentar a vida em contextos de precariedade e violência. A defesa dos territórios e modos de vida frente ao avanço dos megaprojetos e da privatização da natureza, a luta contra o racismo e por políticas que coloquem o cuidado e a sustentabilidade da vida no centro são eixos do feminismo popular latino-americano, que convergem com as lutas pela autonomia sobre os corpos, pelo direito ao aborto e a uma vida sem violências.
Transformar a política, colocando a sustentabilidade da vida no centro: a experiência chilena
O chamado a colocar a sustentabilidade da vida no centro é muito mais do que um slogan; se concretiza em auto-organização. As cozinhas comunitárias armadas para enfrentar a fome durante a pandemia são parte da cultura política que sustenta as lutas populares.
Foi assim nas mobilizações massivas de 2019 que mudaram a conjuntura no Chile, abrindo as possibilidades de uma nova Constituição. Desde então, as mulheres estiveram nas ruas e nas assembleias, na vanguarda e no sustento dos corpos em luta, articulando bairro a bairro, nos quintais e no campo a resistência, a organização popular e as propostas feministas antineoliberais.
Assim, elegeram mulheres para elaborar a nova Constituição e contribuíram para derrotar o projeto da extrema-direita na eleição presidencial chilena. A foto da composição do governo de Gabriel Boric destoa das tradicionais e recorrentes fotos do poder político na maioria dos países da região. Além de composto com paridade, o governo chileno anuncia uma agenda feminista – com muitos desafios para sua concretização.
Na Constituinte, as mulheres organizadas se mobilizam para aprovar cada artigo que reorganize o Estado, atribuindo a este a responsabilidade com o cuidado, com aposentadoria universal e garantia de serviços públicos, revertendo décadas de neoliberalismo. Atuaram pelo reconhecimento da plurinacionalidade e da indissociabilidade dos seres humanos com a natureza. As camponesas pressionam pela aprovação do direito fundamental à alimentação, a soberania alimentar e a promoção do acesso prioritário das mulheres à terra e à água.
Cada artigo aprovado é resultado de luta e motivo de celebração. Mas as mulheres no Chile são conscientes e falam dos desafios para concretizar mudanças de longo alcance, que exigem rupturas e superação do modelo de (re)produção e consumo depredador da natureza, aprofundado por anos de financeirização e vigência de tratados de livre comércio.
Atentas às armadilhas do mercado, seguem mobilizadas para elaborar uma nova Constituição em que a sustentabilidade da vida organize a política. E, sobretudo, o feminismo e a esquerda chilena, como um todo, têm o desafio de que essa proposta transformadora seja aprovada no referendo popular, previsto para setembro de 2022, condição para sua promulgação.
As agendas feministas para a nova Constituição chilena representam o horizonte de “cambiarlo todo” e afirma o que o feminismo de esquerda há tempos constrói: o projeto feminista de sociedade não se reduz a um ou outro tema, é preciso mudar as estruturas para construir igualdade para todas.
Estratégias de luta por autonomia e direito ao aborto: lições da Argentina e do Uruguai
A luta pelo direito ao aborto mobiliza as mulheres em todo o continente. Em dezembro de 2020, as mulheres argentinas colheram o fruto de décadas de uma luta intensa e massiva, quando a legalização do aborto foi aprovada no país. Antes disso, em 2018, a conquista desse direito passou pela câmara dos deputados, mas foi barrada pelo Senado. Diante da capacidade de mobilização das mulheres, o presidente Alberto Fernández explicitamente apoiou essa luta e se comprometeu com a garantia desse direito.
No Uruguai, o artigo que previa a descriminalização do aborto na lei de saúde sexual e reprodutiva de 2008 foi vetado pelo então presidente Tabaré Vasquez. Em 2012, o direito ao aborto voltou para a pauta e foi aprovado pelo Congresso com muita mobilização feminista. Na Colômbia, em março de 2022, a suprema corte votou a legalização do aborto, por 5 votos a 4. Antes disso, 36 projetos para assegurar o direito ao aborto foram rejeitados pelo Congresso do país.
Recuperar os caminhos da legalização do aborto nos países latino-americanos permite conhecer as diferentes estratégias e aprender com as lições de cada processo.
As estratégias para a legalização do aborto na Argentina envolveram a Campanha Nacional Campanha Nacional pelo Direito ao Aborto Legal, Seguro e Gratuito, reunindo mais de 305 organizações, coletivos, sindicatos que levaram a cabo, desde 2005, ações diversas e complementares como educação popular, alianças com profissionais da saúde, acompanhamento feministas as mulheres que abortam, debate e organização das mulheres de organizações de esquerda, enfrentando polêmicas.
Não faltaram opositores dos diferentes espectros políticos, encarados com muita mobilização, criatividade, rebeldia e persistência. Até hoje os lenços verdes usados pelas argentinas são um símbolo dessa luta em toda a região.
A estratégia de mobilização é uma lição fundamental desse processo de luta na Argentina. Lobby e bons argumentos não são suficientes para avançar na legislação. A mobilização permanente passou por um trabalho intenso de educação popular, de construção de espaços para que as vozes e experiências das mulheres sejam ouvidas.
Na Argentina, a defesa desse direito fundamental para a autonomia das mulheres não ficou restrito às organizações feministas, e foi assumida como agenda incontornável para uma sociedade com justiça social. A proibição e criminalização do aborto é também uma questão de classe e de raça, já que as legislações proibitivas não impedem a prática do aborto, mas penalizam mais as mulheres pobres e negras. Para construir as condições de avanço na legislação, o direito ao aborto precisa se instalar como agenda de amplos atores sociais, e sobretudo de sindicatos, movimentos sociais e partidos de esquerda que enfrentam o conservadorismo.
Legalizar o aborto não significa automaticamente garantir a efetivação desse direito. A vontade política do poder executivo e as políticas públicas são essenciais.
No Uruguai, por exemplo, as mulheres enfrentam desafios e obstáculos para acessar esse direito. Entre os principais obstáculos está a objeção de consciência, mobilizada pela classe médica de tal forma que, em cidades do interior do país, 80% dos profissionais se negam a garantir esse direito. Isso chama a atenção para o fato de que há um longo caminho para aprovar o direito ao aborto, mas também há um processo de mobilização permanente para sua efetivação.
O conservadorismo é um componente da ofensiva neoliberal na região, que segue se articulando nas bases da sociedade e como combustível das forças de direita.
Nos territórios, as disputas com o neoliberalismo
Os avanços legislativos e as possibilidades de transformação da política se enfrentam com o autoritarismo do mercado, articulado com o conservadorismo. Muitas vezes ocultadas nas imagens do feminismo veiculadas pela mídia hegemônica, as mulheres estão em movimento disputando os territórios vitais com as empresas transnacionais e o poder corporativo.
Em Honduras, a violência contra as mulheres e os povos indígenas e afrodescendentes cresceu muito nos anos que se seguiram ao golpe em 2009. O assassinato de Berta Cáceres e a perseguição e violência contra lideranças populares são expressões do autoritarismo do mercado, profundamente racista e patriarcal. Ali a disputa é pela vida, pelo território corpo-terra, pela memória, pelos bens comuns, o cuidado com os rios e a natureza. Em seus primeiros atos como presidenta de Honduras, Xiomara Castro declarou o país livre da mineração a céu aberto, uma resposta a essa intensa luta.
Os caminhos e agendas do feminismo popular na América Latina enfrentam o neoliberalismo em diferentes trincheiras. As mulheres colocam os corpos em resistência, recuperam a memória e se orientam por ela ao enfrentar o colonialismo atualizado pelo avanço do capital transnacional sobre os corpos, trabalhos e territórios.
Na aposta por formas comunitárias de organização do cuidado e da sustentabilidade da vida, reconstruindo o tecido social esgarçado por anos de neoliberalismo, militarização e racismo, se encontram mulheres negras, das periferias urbanas e de territórios em conflito, como Colômbia, Haiti e Brasil.
Nas ações de solidariedade feministas e populares para responder à pandemia e à fome, as mulheres compartilham estratégias que aproximam campo e periferia, e criam pistas para recuperar economias enfrentando as desigualdades, reconstruindo o comum e o comunitário. Economia feminista, soberania alimentar e desmilitarização compõe o repertório do feminismo latino-americano.
A práxis e os sistemas de conhecimentos diversos, enraizados nos territórios e baseados na organização de sujeitos coletivos, tecem uma teoria desde baixo. E por essa perspectiva podemos olhar para os acúmulos recentes e os desafios do feminismo popular latino-americano.
Em um continente diverso e desigual, unificado pela resistência anti-imperialista, as mulheres compartilham estratégias e agendas, criam e praticam alternativas de vida, se levantam contra todas as formas de violência insistem que o cuidado da vida humana e da natureza é incontornável para a vida em comum e que precisa ser reorganizado.
O enfrentamento ao racismo se fortalece pela organização das mulheres indígenas e negras, sendo uma condição para qualquer projeto feminista de transformação. Por esses caminhos o feminismo popular latino-americano, em sua diversidade, resiste e confronta o neoliberalismo conservador, ao mesmo tempo em que constrói as condições de transformar o poder e a política nos territórios e comunidades, nos parlamentos e nas políticas públicas, disputando o sentido de justiça e confrontando o poder do mercado.
*Tica Moreno integra a equipe da SOF Sempreviva Organização Feminista e é militante da Marcha Mundial das Mulheres. Esse texto foi publicado originalmente na Teoria e Debate.
*A Coluna Sempreviva é publicada quinzenalmente às terças-feiras. Escrita pela equipe da SOF Sempreviva Organização Feminista, ela aborda temas do feminismo, da economia e da política no Brasil, na América Latina e no mundo. Leia outras colunas.
**Este é um artigo de opinião. A visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato.
Edição: Rebeca Cavalcante